O brilho permanente da escrita feminina

A casa que representa os escritores brasileiros – a Academia Brasileira de Letras – é um espaço masculino, com escassa representação feminina, que demorou a acontecer, e ainda é muito pequena.

Por José Carlos Ruy

Barbara Caldas e Lygia Fagundes Telles - Vermelho

São apenas quatro mulheres entre os quarenta “imortais” da academia: Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Ana Maria Machado e Cleonice Berardinelli. No total, em toda a história da ABL, foram apenas sete mulheres. As outras três foram Rachel de Queiroz (1910–2003), eleita em 1977, quando a academia tinha 80 anos!; Dina Silveira de Queiroz (1901-1982) e Zélia Gattai (1916-2008).

Não que as mulheres tenham ficado à margem da história da academia, e muito menos da literatura brasileira. Elas ficaram à sombra dela.

A escritora Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) participou intensamente da formulação do projeto e das articulações que levaram à fundação da ABL em 20/06/1897. Mas, sendo mulher, seu nome foi excluído da lista dos fundadores da ABL, e seu lugar foi ocupado pelo de seu marido, um poeta de quem hoje pouco se sabe – Filinto de Almeida.

Julia Lopes de Almeida foi a primeira escritora profissional brasileira. Em seus romances, de grande popularidade, a luta pela igualdade da mulher andava de mãos dadas com o abolicionismo e a defesa da república: A Falência, A Família Medeiros, A Intrusa, Eles e Elas, entre outros.

Militante, em 1919 ela criou, com Bertha Lutz, a Legião da Mulher Brasileira, da qual foi presidenta honorária; em 1922 foi uma das organizadoras do 1º Congresso pelo Progresso Feminino.

Foi só em 1930 que uma escritora, a romancista Amélia Carolina de Freiras Beviláqua, do Recife, tentou se candidatar a uma vaga na ABL e, claro, foi rejeitada. Foram necessárias outras quatro décadas para que surgisse outra candidatura, agora a de Dinah Silveira de Queiroz que, em 1971, tentou se candidatar, igualmente rejeitada, de acordo com o regimento da ABL. Ela resistiu, protestou, resultando, em 1977, na mudança daquele estatuto que levou à eleição de Rachel de Queiroz para a ABL. Dinah Silveira de Queiróz candidatou-se novamente em 1979 e 1980, quando finalmente tornou-se a segunda mulher a participar da ABL.

Essa escassa representação da feminina não corresponde nem à presença nem à importância da mulher na literatura brasileira, mas é mais um reflexo do machismo renitente que, em pleno início do 3º milênio, continua vivo.

Poucos ouviram falar de Maria Firmina dos Reis (São Luís/Ma, 1825-1917). Pois é, a forte hegemonia masculina afasta o conhecimento de que a primeira romancista brasileira foi esta maranhense– mulher, negra, pobre, abolicionista – que em 1859 publicou o romance, Úrsula, que defendia o fim da escravidão e a igualdade da mulher. Ao longo da vida Maria Firmina dos Reis também se destacou como republicana.

Ele devia figurar entre os textos inaugurais da história literária brasileira não como uma curiosidade do passado, mas pela qualidade de sua escrita, que antecipa um nome que, publicando meio século depois, também ficaria sob a sombra do preconceito durante muito tempo: Lima Barreto.

A voz da mulher no relato da experiência vivida nesta parte do mundo nunca se calou.

O conjunto dos nomes femininos é extenso. Há aqueles conhecidos, principalmente depois da segunda metade do século 20 – Adélia Prado, Hilda Hilst (1930 –2004), Ana Cristina Cesar (1952 –1983), Ana Miranda, Anayde Beiriz (1905-1930), Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Cassandra Rios (1932-2002), Cecília Meireles (1901–1964), Cora Coralina (1889 –1985), Elisa Lucinda, Gilka Machado (1893-1980), Hilda Hilst (1930-2004), Pagu (Patrícia Galvão, 1910-1962). No século 18 elas já estavam presentes – como Ângela do Amaral Rangel, que participou da Academia dos Seletos, tendo sido provavelmente a primeira poetisa ou a inconfidente Bárbara Heliodora.

No século 19 podem ser lembradas Carmem Dolores, nome literário de Emília Moncorvo Bandeira de Melo (1852-1910), que usou pseudônimos masculinos para fugir do preconceito (Júlio de Castro; Leonel Sampaio ou Mário Vilar)! E a escritora que talvez seja a mais conhecida daquele século, a potiguar Nísia Floresta Brasileira Augusta, ou apenas Nísia Floresta, cujo nome era Dionísia Gonçalves Pinto (1810-1885), autora de Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832), influenciada por Augusto Comte, que conheceu pessoalmente em Paris.

São tantas! Em nosso tempo pode-se destacar uma escritora gigante, Clarice Lispector (1920 – 1977). Pernambucana nascida na Ucrânia, ela renovou a escrita não só com seus monólogos interiores, que marcam o romance Água Viva, mas na denúncia tenaz da opressão da mulher, como em Laços de Família e, principalmente e, A Hora da Estrela, que conta a história de Macabeia, que sonhava em ser igual a Marilyn Monroe, mas era uma moça comum, fora dos padrões de beleza dominantes e só queria ser feliz.

Outra escritora que faz parte desta saga de mulheres autoras é a carioca Barbara Caldas, um talento jovem cujo romance O apartamento de baixo (2004) traz, sob o ponto de vista feminino, a promessa de novos e notáveis desenvolvimentos. Pela qualidade literária da escrita e pela ousadia ao enfrentar os preconceitos permanecem e atuantes na sociedade brasileira. Ela conta a história de uma garota da classe média do Rio de Janeiro e seu namoro com o nordestino que é porteiro de seu prédio. E o que os une é o gosto pelos livros!

Neste cortejo, a decana das escritoras brasileiras, Lygia Fagundes Telles (autora de livros memoráveis como Ciranda de Pedra, As Meninas e Invenção e Memória) pode vencer mais uma barreira e vir a ser a primeira escritora brasileira a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Este ano ela foi indicada à Academia Sueca pela União Brasileira de Escritores. Indicação que pode ser entendida como uma homenagem ao brilho permanente da escrita feminina.