"Impeachment não é recall e exige crime de responsabilidade"

José Francisco Siqueira Neto, diretor da faculdade de direito do Mackenzie, diz que impeachment não é recall e vê sinais de um estado judicial.

José Francisco Siqueira Neto

 Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, uma das mais tradicionais do País, José Francisco Siqueira Neto teme os riscos da instalação de um Estado judicial que subjugue a política e relativize o Estado Democrático de Direito. “Seria uma temeridade.”

Na entrevista a seguir, Siqueira Neto critica o atual rito de impeachment. Segundo ele, querem aplicar um recall, figura inexistente na Constituição.

CartaCapital: Há uma discussão, às vezes bizantina, sobre se impeachment é golpe. E se nas circunstâncias atuais trata-se ou não de um golpe. O que o senhor acha?

José Francisco Siqueira Neto: A previsão é suficientemente clara no sentido de reclamar um crime de responsabilidade, é inegável. O fato de ser um procedimento previsto na Constituição, por si só, não faz dele um instrumento de utilização constitucional como mero exercício.

É preciso atender aos requisitos estabelecidos pela própria Constituição. Essa explicação consta do voto vencido do ministro Luiz Edson Fachin por ocasião do julgamento do rito de impeachment.

Segundo ele, o procedimento era uma questão interna da Câmara, mas a previsão, o enquadramento, a possibilidade de configuração do processo de impeachment ancora-se exatamente nos requisitos do crime de responsabilidade.

Confundem impeachment com recall, não previsto na Constituição. É isso?

Exato. O impeachment não é um instrumento para se destituir um governo com o qual você não concorda. Ele exige necessariamente a prática de crime de responsabilidade. Se começarmos a relativizar esse conceito, caminharemos para um cenário em que tudo se torna absolutamente relativo. As categorias jurídicas fundamentais que norteiam o Estado Democrático de Direito dependeriam do juízo de conveniência política de ocasião. É uma temeridade.

Há quem aponte o risco da predominância de um Estado judicial. O senhor concorda?

É muito difícil apontar com precisão uma determinante absolutamente irretocável no cenário político atual. Pode acontecer de tudo. Temos nuances de um Estado judicial, autoritário, assim como temos nuances de um Estado democrático.

Há, sim, um risco, mas não podemos dizer com absoluta certeza e convicção de que vivemos em um Estado judicial. Vivemos um momento com fortes tintas de um Estado judicial.

Vou repetir uma frase que ouvi recentemente de um jurista italiano: “O processo penal não tem o condão de transformar as estruturas sociais que dependem de uma mudança cultural”. Ou seja, o processo judicial, de maneira geral, não pode substituir o processo político. A investigação de escândalos de corrupção, por mais profunda e dolorosa, não vai acabar com a política.

Quais os riscos?

É um equívoco imaginar que, para resolver os problemas estruturais, basta efetuar uma investigação geral, global, e no fim encontraremos a redenção, a felicidade dos povos a partir da vitória da virtude. Lamento dizer, isso não acontece.

Um Estado judicial tem esse problema de percepção e tende a desprezar as categorias fundamentais e estruturantes do Estado Democrático de Direito: o princípio da não culpabilidade, o devido processo legal, a independência dos Poderes e dos próprios órgãos judiciais.

Da forma como tem sido conduzido, o processo do impeachment não acabaria no Supremo Tribunal Federal, como outros casos recentes?

A possibilidade é grande. Há quem defenda a ideia de que o rito precisa ser rápido para resolver a crise política. Muitos daqueles que pensam assim, obviamente apostam no impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Porém, e se a deposição não for aprovada? Até quando vamos prolongar essa disputa? Parece-me que a questão será judicializada, pois há visões distintas sobre os procedimentos em curso.

Por que os acordos de leniência com as empresas envolvidas em corrupção têm sido tão lentos?

A classe política não se deu conta do impacto econômico da demora nos acordos de leniência e da liberação das empresas para contratos com o poder público. Isso estrangulou o processo. Em um primeiro momento, alguns mais inocentes imaginaram que bastaria substituir as empreiteiras nacionais por estrangeiras ou por companhias médias.

Não funciona assim. Primeiro: não há essa disponibilidade no mercado de empresas prontas a atuar. Os estrangeiros têm receio em participar de licitações em um ambiente como o atual, sem garantias jurídicas.

Em determinados momentos, o Ministério Público diminuiu o impacto econômico da Lava Jato. O governo também demorou a definir qual instância trataria do assunto. Algumas empresas estão seriamente comprometidas em decorrência dessa paralisia. A histeria moralizante que tomou conta do País também teve seu papel.

O fato é que os bancos têm sido obrigados a fazer provisões recordes para os calotes privados em decorrência do impacto econômico da operação. Em algum momento teremos de medir o preço disso tudo. Não teria sido possível combater a corrupção sem destruir a economia?

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal definiu a prisão de condenados a partir de uma decisão de segunda instância. Como o senhor avalia a decisão? Há instâncias de recurso em excesso no País?

Do ponto de vista penal, a liberdade é um direito fundamental e deve ser respeitada até as últimas instâncias. Nenhuma delas é desnecessária quando se trata de assegurá-la. Se o processo demora, é necessário estudar maneiras de reduzir a sua tramitação.

A liberdade não é uma variável de ajuste dos problemas burocráticos. É possível encurtar os processos e respeitar as garantias fundamentais, mas jamais se pode macular a liberdade. É um requisito para uma sociedade civilizada.