A imprensa latina em defesa do cargo de primeira-dama

A repercussão da reportagem que celebrou o recato de Marcela Temer, que causou comoção no Brasil, não é algo inédito nesta América do Sul que viu as mulheres chegarem ao poder, e agora assiste ao que muitos dizem que é a “volta da mulher ao seu devido lugar”.

Por Victor Farinelli*

Cristina Kirchner, Michelle Bachelet e Dilma Rousseff - Reprodução

A foto é de março de 2014, e mostra Cristinha Kirchner, Michelle Bachelet e Dilma Rousseff. Argentina, Chile e Brasil, países que viveram ou vivem governos de mulheres, e a coincidência mais importante é que se tratam de mulheres sem marido – Cristina Kirchner chegou ao primeiro mandato casada, mas no segundo já era viúva. Mulheres que governaram sem a sombra de um homem, que podem ter acertado ou errado, mas que fizeram da sua forma, com o desafio de provar que a mulher pode, e contra muitos que se opunham à simples imagem desse cenário.

Desfazer essa imagem parece ser uma necessidade para muitos defensores do status quo. A iminência do retorno da hegemonia masculina provocou, nos três países, uma certa euforia disfarçada, que se canalizou da mesma forma: a exaltação do retorno do “cargo” de primeira-dama.

O Chile ainda vive o segundo governo de Bachelet, que terminará somente em 2018, mas no final do seu primeiro governo, em 2010, com Sebastián Piñera já eleito para sucedê-la, não tardaram as matérias sobre sua esposa, Cecilia Morel (foto ao lado), num estilo muito parecido ao “bela, recatada e do lar”: ela é uma boa esposa, boa mãe de família, uma vida inteira à sombra do marido, como deve ser. Seu “mandato” de primeira-dama no Chile foi coberto com fervor pela mídia, com as pesquisas mostrando que sua popularidade era maior que a dos ministros e muito maior que a do marido. Nesse momento, ela passou a ser chamada pelo nome de casada, Cecilia Morel de Piñera, para ser um aporte à imagem do marido, e chegou até a ser especulada como candidata à sucessão. Seu principal “projeto” foi uma campanha em favor da alimentação saudável, que consistia em dizer quais as marcas de salgadinhos e chocolates e outras baboseiras continham menos calorias. Curiosamente, as marcas eram as que mais contribuíam financeiramente com a campanha.

Na Argentina, ainda durante o primeiro turno, e com a ausência de mulheres na disputa entre os primeiros lugares, a imprensa já estava se maravilhando com a volta do “cargo” de primeira-dama. Quando a vitória de Mauricio Macri já era iminente, as câmeras não tardaram em buscar Juliana Awada, uma empresária que não é tão “recatada e do lar”, mas que foi destacada justamente por sua capacidade de discrição com relação à atividade do marido.


O presidente Maurício Macri com a esposa Juliana Awada e a filha 


A bem da verdade, cabe lembrar que tanto Macri quanto o seu principal rival, o candidato kirchnerista Daniel Scioli, abusaram do uso de suas esposas na campanha como bibelôs eleitorais em busca do voto pela família. Ambos se aproveitavam de uma imprensa que dizia que assim é como a mulher deve participar da política.

Agora é a vez do Brasil, onde se encontrou em Marcela Temer a antítese perfeita de Dilma, nos aspectos mais importantes para o status quo conservador. A roupagem “bela, recatada e do lar” é exatamente isso, destacar as características que fazem de Marcela a antiDilma.


Marcela e Michel Temer durante a primeira posse de Dilma 


Marcela é uma mulher jovem, num país que vê a mulher com mais de cinquenta anos como uma imprestável. Ostenta o perfeito padrão de beleza euro ocidental. A vida de Marcela é dedicada ao marido e à família, deixou a carreira de modelo para se dedicar ao lar, não a estudar ou trabalhar, não a reivindicar direitos e espaços, para defender suas liberdades, e menos ainda para lutar pela revolução, como fizeram (ou ainda fazem) outras – sabemos a quem se refere, não?

Para parte da imprensa latino-americana, o cargo de primeira-dama é um bastião a ser defendido, e talvez por isso não tenha um correspondente masculino – o argentino Néstor Kirchner não foi primeiro nada de Cristina. Pode parecer uma bobagem, mas não é. Tenhamos em conta, por exemplo, como a imprensa brasileira se recusou, durante todos estes anos, a usar a palavra “presidenta” para se referir a Dilma Rousseff, quase como dizendo que a aceitava no cargo desde que não se esqueça que ele é feito para os homens – essa resistência foi inédita na América do Sul, pois Bachelet e Cristina Kirchner sempre foram chamadas de presidentas, inclusive pelos meios que se opuseram aos seus governos, que não foram poucos.

Alguém poderá pensar que essas resistências não se dão somente por serem mulheres, mas também por serem de esquerda. Isso poderá ser comprovado, ou não, caso o Peru dê a Keiko Fujimori, uma mulher bastante conservadora, o próximo mandato presidencial, no segundo turno, em junho. Veríamos, então, como é o tratamento da imprensa local e da imprensa latina a uma mulher que representa e defende em seus atos os valores do patriarcado.

Até lá, continuaremos saboreando as odes a Marcela Temer, Juliana Awada e Cecilia Morel, os símbolos, voluntários ou não, de uma mulher que tem que saber ser grande, enquanto se mantém atrás de um grande homem, como nos ensinaram que deve ser.