O juiz e o pastel

A primeira grande manifestação de massa contra as torturas e assassinatos políticos cometidos por órgãos de repressão da ditadura militar (como o DOI-CODI) ocorreu em 31 de outubro de 1975: foi o ato supra religioso realizado na Catedral da Sé, em São Paulo, em homenagem a Vladimir Herzog, que fora assassinado sob tortura nas dependências do Doi-Codi. Aquele ato reuniu mais de 8 mil pessoas que, desafiando as ameaças da repressão, lotaram a Sé em repúdio à repressão.

Por Christiane Brito

Manifestação na Praça da Sé - Reprodução
Era 31 de outubro de 1975, e o medo estava em todo canto. Na Praça da Sé, em São Paulo, além de policiais uniformizados havia aqueles disfarçados – muitos de fotógrafos, que registravam em suas câmaras o movimento e os rostos daqueles que estavam na manifestação. E os acompanhava o "medo" que a repressão provoca em todo cidadão. 
 
Mas a atitude do juiz foi um exemplo candente de que o medo pode ser vencido. O juiz era Márcio José de Moraes que, quando Vlado foi morto no Doi-Codi, teria por volta de 30 anos de idade! 
 
Três anos depois – em 1978 – ele inscreveria seu nome na história como o primeiro magistrado que teve a coragem responsável pela sentença que condenou a União pelo assassinato do jornalista. 
 
Exemplo de juiz comprometido com sua profissão e que, como uma pessoa sensível, pode se abrir diante de um processo e ser mesmo transformado por ele! 
 
Um juiz que acredita em uma justiça democrática e enfrenta o arbítrio. São juízes que têm um papel fundamental na consolidação da justiça e da democracia. 
 
O texto que relata a atuação do juiz naquele dia 31 de outubro de 1975 foi extraído do livro “A segunda guerra de Vlado” (Civilização Brasileira, 2012)m de Audálio Dantas.
 
Juiz substituto da 7ª Vara da Justiça Federal em São Paulo, Márcio José de Moraes entrou num período de reclusão voluntária para produzir, no segundo semestre de 1978, um documento histórico: a sentença que condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte de Vladimir Herzog.
 
Com o AI-5 em vigência, o jovem juiz sabia que poderia ser cassado e ter sua curta carreira abreviada antes mesmo de começar. Mas venceu o medo, que era avassalador a ponto de, no dia do culto em homenagem a Herzog, na catedral da Sé, se refugiar em uma pastelaria no fundo da praça, vendo tudo de longe, de modo que pudesse justificar que estava comendo pastel caso fosse interpelado por um policial. 
 
Viveu “uma revolução interior muito grande”, como contou a Audálio Dantas. Ele a descreveu:
 
“Tirei férias para mergulhar no trabalho (…) Passei aquele mês enfrentando a mim mesmo. Trancado em casa, no começo me atormentei, pensando na tragédia de Herzog: ´O que aconteceu com este homem, que tragédia ele viveu em tão poucas horas, as últimas de sua vida? Que terror ele sentiu?
 
Essas indagações me atormentavam, tiravam o sono. Sei que os juízes sempre têm relação ativa com seus processos, mas há casos em que os processos os transformam. Foi o que aconteceu comigo em relação ao caso Herzog. Ao ter o processo em mãos, com a responsabilidade de dar a sentença, me transformei como pessoa. Deixei de comer pastel na esquina.”
 
Nota: Depoimento reproduzido do livro “A segunda guerra de Vlado”, de Audálio Dantas, Civilização Brasileira, 2012