Extinguir o MinC segue a lógica do grande capital, diz Leoni

Para o cantor e compositor  Leoni, a iniciativa do governo interino de Michel Temer de extinguir o Ministério da Cultura é “uma lógica economista voltada para o grande capital”. Trata-se de “transformar a vida em dinheiro”. Engajado  na luta da classe artística por mais direitos desde muito tempo, o músico conversou com exclusividade com o portal Vermelho e falou sobre como esta administração neoliberal interrompe conquistas e impede avanços.

Por Mariana Serafini

Leoni - Divulgação / Leoni

Leoni contou que havia um debate sobre a questão dos direitos autorais, do qual ele participou de diversas mesas de discussão que agora não poderá ser transformado em lei, apesar de ser avançadíssimo, porque o ministério responsável já não existe mais. Ele vê a mudança do MinC para o status de secretaria como um retrocesso que prejudica o Brasil como um todo.

Antes de começar a entrevista, conversamos sobre a informação que acabara de circular, o rumor de que talvez o ministério voltasse a existir. Além de não acreditar na história, Leoni ainda vê como uma estratégia de desmobilizar os artistas porque para ele, o que está acontecendo nas ocupações por todo o Brasil não é só uma luta pela volta do Ministério, mas uma atitude de não reconhecer o governo de Michel Temer.

O músico critica o discurso neoliberal de Temer e denuncia que isso significa exatamente o oposto do projeto que foi eleito nas urnas. “Então tem que tornar a máquina enxuta e eficiente como se esses termos fossem objetivos. Eficiente para quem? Eu acho que é uma posição de desafio a tudo que não é relevante para o grande capital, é uma postura bastante utilitarista e neoliberal, e muito danosa para o país. a gente tem uma cultura muito rica, uma das mais ricas do mundo”, afirma.

Sobre a Lei Rouanet, Leoni é enfático: “é uma lei muito ruim”. A Lei foi criada durante o governo de Fernando Collor, período em que o MinC também foi transformado em secretaria, e surgiu para atender uma necessidade mercadológica. Segundo ele, havia um debate intenso com o ex-ministro Juca Ferreira pra melhorar a lei, ou até mesmo transformá-la totalmente.

Assim como a o fim do MinC, outras propostas do governo interino, como reduzir o SUS ou flexibilizar as leis trabalhistas são “uma sinalização, é fazer o jogo do grande capital”, afirmou Leoni.

Leia a entrevista na íntegra:

Mariana Serafini: Como você vê a atuação do Ministério da Cultura?

Leoni: Um ministério para a cultura é fundamental. Por exemplo, eu tenho participado de muitos encontros com as pessoas do Ministério, no caso a Diretoria de Direitos Intelectuais, para falar sobre direito autoral, sobre como a gente vai organizar uma politica de direito autoral na internet. Isso é complicadíssimo, porque o dinheiro que antes não existia e agora existe está em princípio com o streaming, mas só quem recebe são as gravadoras. Então existem grupos de trabalho sobre isso, onde nós analisamos qual a melhor opção, como melhor enquadrar esses direitos para saber como cobrar. Há pouco tempo o ministério fez uma instrução normativa que está sendo aclamado no mundo como uma visão muito esclarecida a esse respeito que pode dar uma solução para todos os tipos de criadores porque uma solução privilegia autores, a outra privilegia a gravadora e aí parece que uma solução que privilegia todos os setores, depois de uma série de estudos, virou um case no mundo inteiro. E agora a gente não consegue nem transformar isso em projeto de lei porque acabou o MinC, então é uma coisa bastante importante.

Fora todas as políticas públicas, todas as especificidades das várias funções: tem gente que é especializada em patrimônio histórico, tem as bibliotecas, incentivo ao livro, circo… é um ministério que já abarca uma diversidade de funções que é raro ter algo tão vasto assim. Ainda mais a cultura toda, do Brasil inteiro, Pontos de Cultura, é uma engenharia muito complicada e faz isso com muito pouco dinheiro e quadros muito especializados.

Há uma confusão muito grande entre o MinC e a Lei Rouanet. A Lei Rouanet não tem a ver com o MinC, ela não foi criada pelo MinC, na verdade foi criada pelo [Fernando] Collor quando o MinC foi extinto e virou secretaria para privatizar a cultura. As empresas é que dizem para onde vai o dinheiro. É uma lei muito ruim. Mas é uma lei que ganha publicidade. “Ah, a Claudia Leite pediu verba para patrocinar a biografia dela, patrocinou o Rock’n’rio, patrocinou os Rolling Stones e isso é uma deformação porque a lei foi criada para atender o mercado. O mercado diz quem ele quer patrocinar e essa lei precisa ser revista. Estava sendo revista pelo MinC porque o ministério também a considera muito ruim.

Havia um debate entre os artistas e o poder público?

Muito, muito! É porque existem setores que são apegados, que não conseguem sobreviver sem patrocínio, não é o caso da música, mas existem setores que não conseguem viver sem patrocínio. Só que o dinheiro da Lei Rouanet é maior que o orçamento do MinC. Se ao invés desse dinheiro ficar na mão das empresas fosse para o MinC seria uma outra cultura, uma outra possibilidade. O Juca [Ferreira] mesmo estava tentando acabar ou substituir pelo Pró-Cultura ou modificar muito a lei para ela não ter este erros.

Mas a população em um mundo tão utilitarista onde tudo tem que servir para um propósito, a cultura não serve para nada. Virou uma coisa muito economicista. Cultura gera dinheiro? Claro que gera, mas eu não gosto nem de entrar nesse debate. Parece que tem um estudo que mostra que cada R$1 que você aplica em cultura no Brasil gera de R$ 5,00 a R$ 7,00 de retorno. Mas não é essa a discussão.

Isso é o olhar do liberalismo, do grande capital. E não é isso. [A cultura] é nossa identidade, são os nossos valores, é o que faz a gente transcender, passar por cima da nossa vida cotidiana que é só pagar contas, pegar ônibus… De repente você pode transcender e isso é mais importante ainda em tempos de crise porque se sua vida é toda voltada só para a rotina e o dinheiro, quando isso vai mal tudo vai mal. Se você tem outros valores você consegue transcender, a vida é muito mais suportável. O Nietzsche falava que a “arte é importante para não deixar realidade nos destruir”.

Existe um pensamento na sociedade, principalmente a parte mais conservadora, de que não pode existir o MinC porque está faltando leito no hospital, como se o dinheiro do MinC fosse resolver o problema da Saúde que é infinitamente mais caro. Tem uma resistência muito grande e eu acho que essa resistência é justamente por causa da Lei Rouanet, é uma lei muito ruim, uma lei do governo Collor voltada para o mercado. Já existe até a proposta de setores – não é consenso na classe artística – que seria melhor a gente pedir a volta do MinC e a extinção da Lei Rouanet. Porque é essa lei que faz o povo achar que nós estamos “mamando nas tetas do governo” que é outra mentira porque ninguém recebe mesada do governo. A Lei Rouanet é para projetos e quem dá o dinheiro são as empresas. Tem um monte de distorções que eu acho até que são intencionais para tirar o valor da cultura. E a arte também é muito subversiva, então cala os artistas. Eu acho até que tem um certo grau de retaliação pelo fato de os artistas em geral terem se colocado contra o governo Temer.

O que significa esse governo interino extinguir o ministério?

Isso é transformar a vida em dinheiro, toda a lógica é economicista voltada para o grande capital. Garantir que manifestações regionais consigam sobreviver não dá dinheiro, não dá nem prestígio, só um pessoal sabe, não dá mídia. Então tem que tornar a máquina enxuta e eficiente como se esses fossem termos objetivos. Eficiente para quem? Eu acho que é uma posição de desafio a tudo que não é relevante para o grande capital, é uma postura bastante utilitarista e neoliberal, e muito danosa para o país. A gente tem uma cultura muito rica, uma das mais ricas do mundo. A nossa música, fora a dos Estados Unidos e a da Inglaterra que sempre tiveram poder comercial muito grande de exportar, eu acho que é a mais rica que existe no planeta, tirando a cultura dos países da África como Gana, Mali… Eu acho que é uma sinalização, junto com todas as outras coisas, falar no tamanho do SUS, pensar em flexibilizar leis trabalhistas, é fazer o jogo do grande capital.

Uma sociedade criada para o consumo, com incapacidade de solidariedade. Agora todo mundo compete. A arte passa por cima disso. Também tem essa visão consumista da arte, que a arte é um produto. “Ah, se você tem seu trabalho venda seu trabalho”. A arte não é produto, a arte virou produto. A música existe antes da agricultura, ou seja, existe antes do existir comércio, antes de poder ser negociado, é uma necessidade humana primordial. Já se pintava nas cavernas, ninguém vendia aquilo. A arte não é produto. Não dá lucro. Não é para dar lucro. Aí [dizem] “o artista tem que trabalhar”, como se arte não fosse trabalho. Tem um monte de distorções que as pessoas vão comprando e tem uma parte dessa sociedade mais conservadora que começa a ficar com raiva de artista. “Agora acabou a mamata, acabou a Lei Rouanet”. Não acabou, a Lei Rouanet vai ser a base de tudo se a gente não berrar. É exatamente o contráro, um governo neoliberal deixa que o mercado tome conta disso. “Agora vai ter que trabalhar”, como se a gente não trabalhasse. E não tem nem como conversar com essas pessoas porque elas não querem ouvir, elas só querem atacar então de repente os artistas viraram inimigos, como sempre foram inimigos do poder. É muito esquisito isso.

E como você vê a resistência dos artistas?

Eu acho que a gente tem consciência do poder da nossa imagem, mesmo tendo essa parcela da população que vem atacando nas redes sociais. Tanto que já existe esse rumor de que o MinC poderia ser recriado que é para evitar que o presidente fique ainda mais impopular do que ele já é. A gente percebe que tem esse poder e por isso está se manifestando. A gente tem um problema sério é em como chegar no governo diretamente porque boa parte da classe não quer nem a negociação com o presidente para não reconhecer o governo dele. Então é complicado. Em outras ocasiões a gente já foi ao congresso, já foi ao presidente ou à presidenta conversar e explicar nossas demandas. No caso do Temer tem desde quem queira ir, como “ah, não tem jeito, política tem que sujar as mãos mesmos”, até gente que fala “não quero, não assino”, que não quer reconhecer um governo que já começou assim, o avesso do projeto que foi eleito.


Show do Otto nesta quarta-feira (18) na ocupação da Funarte no RJ | Foto: Mídia Ninja 


Então é complicado. Nós estamos resistindo junto com as ocupações. Hoje [quarta-feira, 18] tem show do Arnaldo Antunes e do Otto na ocupação aqui do Rio, amanhã [quinta-feira, 19] sou eu e o Frejat, na sexta-feira [20] tem Caetano Veloso. Então nós estamos dando nossa cara lá e dizendo: “a gente apoia isso, a gente apoia essa ocupação”. O pessoal vem fazendo barulho mesmo, já teve uma carta do Procure Saber que é o pessoal da música. Aí eu fui em outra reunião do pessoal da APTR [Associação de Produtores de Teatro do Rio] que reúne várias entidades que também fizeram uma carta pública. Teve a entrevista do Caetano no Globo falando disso, a gente consegue fazer barulho e reverter. Tem muita gente que está mobilizada. Até pessoas que foram a favor do impeachment com a história do MinC mudaram de lado no sentido de pressionar pela volta do MinC porque se sentiram de certa forma meio responsáveis por isso. Então no sentido de fazer a força pelo MinC estamos todos juntos. A gente está conseguindo alguma coisa, pelo menos esse rumor de que o Renan [Calheiros] teria proposto ao Temer a recriação do Ministério da Cultura só acontece porque isso gera muita impopularidade. Todos os lugares estão sendo ocupados, todos os artistas [estão] falando mal, isso gera um risco de ele [Temer] ficar tão impopular que os senadores que apoiaram o impeachment desistam dele. Estamos juntos nessa briga.