Anna Muylaert: "O impeachment é totalmente sem sentido"

Diretora de "Que horas ela volta?" e "Mãe só há uma", a paulista Anna Muylaert critica processo que afastou Dilma Rousseff (PT) da presidência. E diz: ''eu chamo de golpe''.

Anna Muylaert

Uma das cineastas mais provocativas de sua geração, a paulista Anna Muylaert, 52 anos, esteve em Fortaleza há pouco mais de uma semana para o lançamento de seu novo filme, Mãe só há uma. Adaptação livre de um caso real – o rapto de uma criança e as consequências do crime para as duas famílias do garoto -, o longa explora ambiguidades identitárias de classe social e de gênero. Depois do sucesso de Que horas ela volta?, Muylaert investe no que classifica de personalidades não binárias ou identidades fluidas.

Em entrevista ao jornal O Povo, do Ceará,  a diretora fala sobre cinema e política. Acompanhando o dia a dia da presidente Dilma Rousseff (PT) desde que foi afastada, Muylaert prepara documentário sobre o exílio forçado da petista.

Quero começar a partir do seu filme mais recente, Mãe só há uma. Você trata de um caso verídico e o transporta para um plano da ficção. Mas acrescenta uma outra camada de leitura, que é essa do jovem.

Não binário.

Exatamente. No decorrer da trama, a forma como ele se veste, reflexo da forma como se comporta, acaba funcionando como elemento de tensão também. Como esse elemento se encaixou nessa história?

Na verdade, sempre entendi que o filme seria uma adaptação livre e que o que eu queria discutir era identidade. Como se sustenta uma identidade se os parâmetros externos mudam, não eram reais. No ano de filmar, sempre faço uma revisão em cima disso e foi aí que eu conheci essas pessoas não binárias. Eu quis trazer isso pra dentro do filme. Achei que se encaixava perfeitamente. Na hora do conflito máximo, ele tem uma identidade oculta e essa identidade sai. E isso ajudou a contar essa história, que, hoje, está bem distante da história original.

Você fala que conheceu na noite de São Paulo. Esse conhecimento fazia parte do método de pesquisa pro filme ou foi algo casual?

Foi um conhecimento casual que me fez aí, sim, estudar. Porque eu não entendia direito no começo.

O que atraiu você inicialmente na personalidade desses jovens?

Na minha idade, na minha época, era assim: é gay, é hétero, é isso ou aquilo. No máximo, tinha três coisas e a travesti lá na esquina. E, de repente, tem um cara de vestido e barba namorando uma menina. Aí fundiram esses temas. Fui estudar e ver que é uma nova visão mesmo. É fluxo. Não estão mais, como nas gerações anteriores, querendo pegar bandeiras. É gay, é isso ou aquilo. Não querem bandeiras nem rótulos. Eles querem liberdade. Então, achei que isso era algo muito novo. Eu não conhecia essas novas formas de sexualidade e de composição de identidade de gênero. Eu quis trazer pro filme. Achei que ia combinar e deixar o personagem mais contemporâneo.

Em algum momento, o fato de ele usar roupa de menina acaba incomodando mais a família do que propriamente a distância, esse tempo fora. Foram 17 anos. Quando ele retorna à família biológica, isso acaba se tornando um elemento forte de tensão, mais até do que o estranhamento resultado do afastamento.

O filme é visto do ponto de vista do menino. Esse afastamento pra ele não existe. Pra ele, existe a ruptura. Os 17 anos de sofrimento estão com os pais. E acho que esse tempo gerou uma expectativa. A mãe, quando ele chega, vai mexer na mala dele como se ele fosse uma criança. Ela quer dar um sanduíche. Ou seja, tem um atraso de 17 anos que ele entende como uma invasão. E aí essa natureza oculta dele, que é essa não binaridade, pula como se fosse uma forma de se colocar, de firmar a identidade dele. Para o personagem, isso é mais forte do que essa falta da mãe.

Em Que horas ela volta?, a Jéssica (personagem de Camila Márdila) acaba dividindo o filme com a Val, vivida pela Regina Casé. O Pierre também. São dois jovens que dialogam muito intensamente nos dois filmes. Você concordar que há uma proximidade?

Sim, acho que os dois são rebeldes. Eles não cumprem com as expectativas, nem que as mães têm com eles nem que o espectador tem com eles. Mas a personagem principal é a Val, que está com a mão no status quo, e a Jéssica vem quebrar. A gente está com a Val. E aqui o Pierre é sozinho. Ele que leva a narrativa. É praticamente o menino quebrando tudo, rótulo, expectativa, ideia de gênero… A Jéssica é pinto perto dele.

Nos dois filmes, há um elemento de uma classe social baixa que desestabiliza os códigos de vida da classe média alta. Tem a mãe que sequestra a criança. É uma mãe de classe média baixa. A Val e a Jéssica também são personagens de classe baixa. Então, o universo da classe média meio que se desmantela com a presença desses dois jovens de classe baixa.

Acho que os dois personagens têm uma autenticidade que vai confrontar essa classe alta, que é o setor mais conservador da sociedade. É o que mais tem a perder, mais tem a zelar por um padrão. Mesmo essa questão da transsexualidade e transgerenidade, nas pesquisas que fiz para o filme, eles são assuntos muito melhor aceitos nas classes baixas do que na classe mais alta. É “Fora, Temer”. São eles que estão sempre querendo manter os privilégios. Quanto mais alta a classe, mais conservador, por mais bonzinho que possa parecer. Mas a gente também tenta humanizar. Ele preferia estar com afeto na periferia a estar na classe do Jardim Europa (bairro nobre de São Paulo), com os pais tentando botar roupa nele, dentro de uma forma pré-estabelecida. Ele prefere ser o indivíduo que ele é.

A política é um elemento forte nos seus filmes. Que horas ela volta? tem e Mãe só há uma também. O cinema brasileiro recente tem um discurso político que se notabiliza. Por que acha que isso tem acontecido? Tem a ver com o ambiente político?

Talvez seja efeito do governo Lula, no sentido de que ele ampliou, tornou mais forte uma democracia social. Mais indivíduos foram incluídos na categoria de cidadãos do que antes.

O som ao redor é um filme marcante, histórico. Apesar de ter esse roteiro há muito tempo, O som ao redor fervilhou meu sangue e me ajudou a terminar o meu filme com mais coragem de dizer o que eu queria dizer, embora eu já quisesse dizer eu mesma faz tempo. E o fato de dois filmes seguidos fazerem sucesso, em nível nacional e internacional, com histórias políticas… Talvez seja uma tendência do momento. Tomara que seja. Porque a gente está precisando, ainda mais agora.

O País está no meio de uma crise política, de representação, de instituição. Como o cinema tem se apropriado disso? Mais especificamente, como o artista brasileiro tem reagido a esse clima?

Os artistas sempre são os que mais falam. O Kleber (Mendonça Filho) lá em Cannes (Festival de cinema) com Aquarius (longa-metragem mais recente do diretor, ainda sem estreia prevista no Brasil), as pessoas em shows etc.

Os artistas têm um papel forte. Mas a arte mesmo, ainda não vi nada ser produzido a partir disso (da crise). Acho que ainda está todo mundo meio atônito. O que sei que está sendo feito são vários documentários sobre este momento. Aliás, todos dirigidos por mulheres.

Você falou em “golpe”. Como vê o processo de afastamento da presidente Dilma?

Desde que Dilma foi eleita, o outro lado não aceitou. Ela foi perdendo base, ficou sem apoio na Câmara dos Deputados, e agora a gente entende por quê. Também houve um elemento sexista. Foi um investimento em derrubá-la por motivos fúteis, como pedaladas fiscais e corrupção. E conseguiram, por meio de artifícios judiciais, fazer essa manobra, que eu considero um golpe, sim. Considero uma eleição indireta travestida de impeachment. O impeachment é totalmente sem sentido, ilógico, mas representa uma vontade dos conservadores de retomar o poder. O PT ficou tempo demais no poder, e eles tomaram à força. Se esperassem mais dois anos e fossem eleitos, estava tudo normal. É normal que um país alterne o poder. É saudável. Agora, tirar uma mulher no meio do mandato, sem uma acusação grave, é grave. Por isso eu chamo de golpe.

Você falou que há elemento sexista no afastamento da presidente Dilma. Por quê?

Porque isso que fizeram com ela, não fariam com um presidente homem. Acho que existe um elemento de misoginia do patriarcado brasileiro, que foi quem fez esse movimento (de impeachment) e é quem está ali hoje. Não à toa, esqueceram de botar mulher nos ministérios. O Serra (José Serra, chanceler do Itamaraty) deu uma declaração absurda (durante visita ao México, o ministro falou que a quantidade de mulheres ocupando cadeiras no parlamento daquele país era um perigo para os políticos homens brasileiros). Para o patriarcado, aquela mulher dando ordens não foi algo que eles gostaram. E aí entra um forte traço de misoginia. Resolveu todo mundo tacar pedra na Geni, bosta na Geni, tudo é a Geni.

Agora em agosto, o Senado vota o impeachment e, salvo alguma hecatombe, a presidente deve ser definitivamente afastada. O que você acha que vem depois disso? Como o País deve se comportar?

Eu não acho nada. Acho que ninguém tem dados pra saber. Uma vez que a Constituição não foi respeitada… Uma vez que foram criados artifícios para se fingir que se está fazendo uma ação constitucional, quando são atos inconstitucionais, não dá mais pra saber. As regras não estão mais claras.

Você tem acompanhado a presidente Dilma Rousseff (PT) depois do seu afastamento?

Sim, estou envolvida nesse projeto de documentário sobre o período de afastamento da Dilma.

Você pode falar sobre esse projeto?

É um projeto sobre o afastamento que acompanha o dia a dia da presidente e o seu entorno. Estamos descobrindo o filme ainda. Vamos acompanhar a presidente até o dia da votação, o dia em que ela sai ou ela fica. Se sair, a gente filma a saída. Se ficar, a gente filma ela voltando para o Palácio do Planalto.

Você falou do elemento sexista no processo de impeachment da Dilma. Como artista, você passou por um episódio envolvendo o também cineasta Cláudio Assis (Amarelo manga e Febre do rato), no ano passado, durante o lançamento de Que horas ela volta?. A mulher ainda sofre muito fazendo cinema ou isso é algo que acontece em todos os campos?

A mulher sofre em todas as áreas se ela sai do papel destinado a ela, que é o papel de assistente. Se ela se torna líder, em todo lugar é difícil. Veja o caso da Dilma. Isso é em todos os setores da sociedade. Isso é atávico. A mulher é feita para ser uma grande mulher atrás de um grande homem. Se ela toma um passo à frente… Esse episódio foi apenas um gatilho pra abrir uma discussão muito maior e mais importante sobre o audiovisual no País. Tanto é que foi um debate local, no Recife, que levantou questões que estavam interessando a todo mundo discutir. O evento, em si, foi apenas um estopim para um assunto que estava inflamado. Mas não tem problema. O Cláudio Assis é um dos diretores que eu mais admiro. É uma das pessoas mais sérias. Nunca tive e continuo não tendo vontade de falar mal do Cláudio. As pessoas acham que ele me agrediu. Ele nunca agrediu. Ele me impedia de falar, que é bem diferente. Mas foi o estopim para o pessoal do Recife, que estava de saco cheio dessas intervenções (do Cláudio Assis).

Desde 2014, o Brasil vive a expressão de um sentimento muito próximo do ódio, sobretudo nas manifestações que marcaram os últimos anos, mas não apenas. A gente vê isso nas redes sociais também. Como você avalia esse momento? A gente experimenta agora uma janela de mudança social ou pode resultar em nada?

Não, eu vejo uma possibilidade de mudança. Acho que essa intolerância que a gente está vendo agora é uma reação ao fato de que, na soma dos governos do PT, eles acabaram propiciando uma grande mudança social para uma parcela grande de pessoas. É a inclusão na universidade, são as cotas para negros etc. É muita coisa, inclusive acesso a bens culturais e a bens de consumo. Isso foi uma mudança tão grande num período tão pequeno, embora pequena, que gerou essa reação das pessoas. Acho que isso aí (ódio de classe), aos poucos, deve se arrefecer. Porque um país desenvolvido não pode ser desenvolvido com um abismo social do tamanho do que o Brasil tradicionalmente tem. Então, acho que a elite há de entender, como a elite europeia sabe um pouco, que é preciso que haja equilíbrio social para que uma nação possa ir bem no seu todo. Agora, acho também que, neste momento, está tudo muito inflamado ainda. O grande legado de agora é que, se posso dizer assim, a “bosta” foi jogada no ventilador. Porque, ao ver aquela Câmara (dos Deputados, durante a votação da admissibilidade do processo de impeachment de Dilma) em abril, todo mundo entendeu que não está representado ali. É metade empresário, metade ruralista e poucas mulheres. Acho que todo brasileiro viu. Vai haver uma reação de consciência na hora do voto, mas também de ficar mais ligado nessas reformas políticas, que até ontem era um assunto lá de Brasília e hoje é um assunto de qualquer lugar. Em médio prazo, o momento de hoje vai ajudar a gente a organizar as instituições de uma maneira melhor. Só posso acreditar nisso.

Você estava vendo TV naquele 17 de abril?

Estava. Foi uma ópera-bufa. Eu fiquei triste, mas parece que todo mundo se surpreendeu também. É aquilo mesmo? É aquele nível? E todo mundo sentiu vergonha. Eu senti. Como eu não sei que é assim? Eu não sabia. Acho que ninguém sabia. Então, foi exposta a ferida. Como freudiana, acredito que, quando a ferida aparece, a gente tem mais chance de curar do que quando ela está oculta. Acho que vai ser o grande legado deste momento difícil.

Você já pensou em trabalhar artisticamente essa vergonha?

Ainda não. Estou trabalhando nesse documentário da Dilma, por enquanto. E estou pensando em fazer um filme sobre mecanismos sexistas e machismo. Sobre isso, ainda não. Estamos no meio ainda, não tem como pensar.

Por que sobre o machismo?

Porque acho que é uma questão que também está muito inflamada. Até o próprio impeachment, como eu disse, é infectado por isso. Não apenas isso, mas também por isso. O machismo é uma estrutura mental da nossa sociedade inteira, homens e mulheres, não apenas homens. E ele vem de tanto tempo, talvez desde a mamadeira, que é difícil visualizar e compreender. Acho que as mulheres não estão mais a fim de ser tratadas desse jeito. A gente está tentando mostrar. Porque tem muito homem a fim de melhorar, mas não sabe direito como. Então, há um esforço das mulheres, neste momento, de mapear essas ações. Não tem mais essa história de a mulher lavar a louça e o homem chegar e dizer: eu vou ajudar. Você não vai me ajudar, você também é dono da casa. Metade do trabalho é minha e a outra metade é sua. Tem que mudar essas posturas. Elas são sutis. Por isso um filme sobre isso. Pra pesquisar e esclarecer e mostrar pra mim e pra quem assistir onde e quando essas pequenas coisas acontecem. Como a mulher é diminuída no dia a dia.

Perfil

Anna Muylaert, 52 anos, fez cinema na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP). É diretora e roteirista. Participou da produção de programas como Mundo da Lua (1991) e Castelo Rá-tim-bum (1995), da TV Cultura. Trabalhou com o diretor cearense Karim Aïnouz na série Alice , da HBO. Dirigiu os longas Durval Discos (2002), prêmio de melhor filme e de melhor diretor no 30º Festival de Cinema de Gramado. Que horas ela volta? (2015), com Regina Casé e Camila Márdila, é o seu filme de maior sucesso. A produção foi premiada em vários festivais de cinema pelo mundo, como o Sundance e o de Berlim.