Medalha de papelão para o discurso de meritocracia

É só alguém fora dos padrões convencionais da “família tradicional brasileira” ganhar uma medalha, que os conservadores já tentam se apropriar do triunfo. Ao contrário do que dizem, a conquista do lugar mais alto do pódio pela judoca Rafaela Silva não reforça a ideia de meritocracia e sim a derruba.

Por Penélope Toledo*

Rafaela Silva - Francisco Medeiros/Ministério do Esporte

Programas de incentivo ao atleta:

Sim, Rafaela foi campeã porque tem um talento próprio que é inato e exclusivamente seu. Mas que poderia ou não ter sido estimulado e desenvolvido, tática e tecnicamente por meio de treinamentos e patrocínio público e do Instituto Reação, coordenado pelo medalhista olímpico Flávio Canto.

Se ela não fosse beneficiária do Bolsa-Atleta, programa de incentivo ao esportista criado em 2004 e regulamentado no ano seguinte, no governo Lula, talvez esta mulher negra, favelada e homossexual tivesse que abandonar o seu sonho, como fazem tantas outras mulheres negras, faveladas e/ou homossexuais.

A biografia da judoca evidencia que não é verdade que qualquer pessoa pode conquistar ouro, bastando se esforçar. É preciso, também, ter oportunidades, como ela própria reconheceu ao apoiar a reeleição da presidenta Dilma Roussef, em 2014.

Mesmo sua entrada na Marinha foi em cota reservada a atletas, fruto de uma parceria entre os Ministérios da Defesa e do Esporte. Ou seja, sua atuação na Marinha, embora com méritos próprios, igualmente não entra na conta da “meritocracia”.

Feminismo e luta anti-racista:

Outra falácia é dizer que ela “não precisou do feminismo” para conquistar a sua medalha. Errado, ela precisou, todas precisamos. Não fossem as feministas, as mulheres não teriam direitos e estariam fadadas a ficar eternamente dentro de casa cuidando do lar. Praticar esportes, tal qual trabalhar, estudar etc, são conquistas feministas.

Estar em uma Olimpíada, também. A participação feminina foi garantida em 1900, ainda assim em um evento paralelo (que durou até 1928), após seis esportistas peitarem os organizadores. O Barão de Coubertim, criador das Olimpíadas Modernas, até pediu demissão acusando a presença feminina de ser uma traição ao espírito olímpico.

Rafaela também precisou – e muito! – da histórica luta de combate ao racismo. Ao ser eliminada dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, internautas chegaram a declarar que “lugar de macaco é na jaula e não na Olimpíada”. A afirmação é criminosa, tipificada como injúria racial no artigo 140, § 3º do Código Penal. A judoca chegou a pensar em desistir da carreira.

Até para poder participar da Olimpíada, Rafaela precisou dxs que lutaram pelo combate ao racismo e garantiram a presença de negrxs. Nas duas primeiras edições só tinha bancos. Nos Jogos de 1904, em Saint Louis (EUA), foi registrada a presença dos primeiros atletas negros: dois zulus semi-selvagens, Lentauw e Yamasani, disputaram a maratona descalços e com chapéu de palha, e foram alvo de deboche.

O povo no pódio:

Mulher, negra, favelada, homossexual, eleitora declarada da Dilma Roussef e beneficiária do Bolsa Atleta. Oprimida por todos os lados, abominada pela “família tradicional”, representante de uma gente que quase não tem direitos e os poucos que tem são chamados de “privilégio” pelos que, de fato, têm privilégios.

Mas é dela a primeira medalha de ouro brasileira no nosso país. A sociedade teve que engolir o seu preconceito e aplaudir a pessoa que, para muitos, deveria estar “na jaula”.

E vai ter que engolir também o discurso falacioso de meritocracia. Porque mesmo que não se dê conta, Rafaela levou consigo ao lugar mais alto do pódio a luta feminista, a luta pela igualdade racial, a luta contra a homofobia, a luta por justiça social, a luta por um Brasil que dê oportunidade – que não é o Brasil dos golpistas.