Milhares de africanos perdidos no México

É uma tarde de sábado. Da cidade de Tijuana, Sergio Tamai, ativista pelos direitos de pessoas migrantes, resume a nova crise nessa parte da fronteira do México com os Estados Unidos. “O governo já passou dos limites, por mais que tentem esconder, já não conseguem, e a situação vai estourar em suas mãos”, advertiu.

Alguns africanos diante de um posto de atendimento a migrantes, na cidade de Tijuana, na fronteira do México com os Estados Unidos - Guillermo Arias/Enelcamino

Fundador da organização Anjos Sem Fronteiras, o ativista fala de um fenômeno inédito, que surpreende essa cidade do extremo noroeste mexicano, a mais povoada do Estado de Baixa Califórnia e criada por migrantes: a chegada de milhares de africanos e haitianos que buscam asilo nos Estados Unidos.

Não se sabe quantos são. A municipalidade reconhece 350, que estão em seus abrigos, mas organizações civis dizem que podem ser até sete mil. Muitos se encontram em Tijuana desde maio de 2016, mas outros apareceram nas primeiras duas semanas deste mês. O fluxo não se deteve e é muito possível que sua origem seja mais antiga do que o dessas estimativas.

Mas agora é visível, por três motivos: a quantidade de migrantes está aumentando, os primeiros que chegaram gastaram seu dinheiro e foram para as ruas conseguir mais. Antes viviam em hotéis. A terceira causa é que alguns meios de imprensa locais começaram a divulgar o fenômeno, depois que o governo dos Estados Unidos denunciou uma possível venda de passes por parte do Instituto Nacional de Migração (INM) para solicitar asilo humano.

Entretanto, além dos números, há alguns elementos que tornam inédito o fenômeno, mesmo nessa cidade que em matéria migratória viu quase de tudo.Os recém-chegados, especialmente os procedentes da África, são parte de um fluxo suspeitamente ordenado e silencioso, que inclusive conta com apoio do INM, segundo denúncias de ativistas pró-migrantes.

Muitos têm recursos que permitem que sobrevivam no México durante meses, e não é só isso: têm clara a forma para tentar asilar-se nos Estados Unidos, o que implica conhecimento de leis internacionais ou, pelo menos, dos trâmites burocráticos das autoridades norte-americanas.

Não é comum no fluxo humano que cruza o México. Nem mesmo na centenária tradição migrante deste país para o norte. Por isso o fenômeno é inédito. E alguns, como o sacerdote Alejandro Solalinde, fundador do albergue Irmãos no Caminho, têm claro o panorama: a crise migratória, que se gesta em Tijuana, é parte de uma elaborada estratégia de máfias transnacionais de tráfico de pessoas, capazes de mover por todo o planeta não só africanos mas migrantes de qualquer nacionalidade.

Grupos que, de acordo com protocolos internacionais, como o de Palermo (sobre o crime organizado) só podem existir com apoio ativo, ou por omissão, das autoridades. Mas agora alguma coisa falhou para que a porta para essa migração de passagem livre, considerada de privilégio pelo alto custo da viagem (US$ 20 mil, em média), tenha se fechado. E as consequências são vistas nas ruas de Tijuana.

Historicamente,cidadãos de meio mundo cruzaram a fronteira sul do México. Em Tapachula, a maior cidade da região, não são poucos os que falam de indianos, paquistaneses, iraquianos, chineses e naturalmente, centro-americanos, cubanos e haitianos que em algum momento das últimas décadas caminharam por suas ruas ou se refugiaram em algum hotel.

Poucas eram as referências aos africanos, até há alguns anos, quando sua presença começou a ser cada vez mais evidente. Apareceram após a onda de cubanos que escaparam de seu país diante do descongelamento das relações entre Havana e Washington, que colocou em risco os privilégios migratórios que os ilhéus mantiveram por décadas.

Muitos desses africanos também chegaram diretamente aos escritórios do INM para se entregar e pedir um ofício de saída, que serve como salvo-conduto por um mês para evitar ser detido. O documento estabelece que seu portador está em processo voluntário de abandonar o país e, por isso, enquanto estiver em vigor, não pode ser deportado.

Um trâmite que existe há décadas mas que não costumava ser aplicado a migrantes irregulares recém-chegados ao México. Há alguns anos, as vítimas eram, geralmente, estrangeiros com vários anos radicados no país, que tinham sua permissão de permanência temporária vencida, conhecida como FM3.

O ofício de saída obriga o migrante a deixar o México, mas não impede seu reingresso, mesmo horas depois de partir. Muitos o utilizam para regularizar sua situação migratória. A decisão de aplicar essa medida écertamentearbitrária, porque é frequente em populações como argentinos, espanhóis ou chilenos (naturalmente quase nunca norte-americanos), mas são contados os casos em que centro-americanos recebem esse beneficio.

Agora os africanos recebem o ofício, contou Solalinde. O documento permitiu que chegassem até Tijuana, onde nos últimos meses se converteram em uma bomba de tempo. “As autoridades estão perdidas. Propusemos fazer um acampamento para concentrá-los e não ficarem nas ruas, mas disseram que não, porque em pouco tempo chegariam milhares”, apontou Tamai.“Só o que fizeram foi tirá-los dos lugares onde se concentravam e agora andam perambulando pelas ruas. Já chegaram até Praias de Tijuana”, acrescentou. Essa área fica na zona oeste da cidade, no Oceano Pacífico.

A presença de milhares de africanos e haitianos em Tijuana não é gratuita, insistiu Solalinde. A viagem começa em países como Nigéria, Gana, Mali, República Democrática do Congo, Senegal, Somália, Eritreia ou Burkina Faso, segue por Brasil, Equador, Colômbia, América Central e México.É uma longa viagem, que quase ninguém faz sozinho, e que geralmente está a cargo de gangues transnacionais de tráfico humano.

Eles tinham garantida a passagem para os Estados Unidos, graças à corrupção de agentes do serviço de imigração desse país.Mas isso mudou, pontuou Solalinde. “Há quatro ou cinco meses, havia um tráfico regular operado pelo INM. Chegavam voos regulares, por exemplo, da fronteira sul a Toluca, com orientais ou indianos, que eram levados diretamente para Tijuana”, afirmou.

Em pouco tempo, quase sem saírem do aeroporto, os migrantes chegavam às guaritas de migração e cruzavam sem problema, ou utilizavam outras vias irregulares e mais caras.“Havia narcotúneis por onde as pessoas também passavam, custa muito, mas cruzavam. Agora estão sendo fechados. Também passavam de carro com documentos falsos e quem estava na guarita aceitava, mas agora isso acabou”, contou Solalinde.

Não se sabe o motivo de a porta clandestina para os Estados Unidos ter sido fechada, mas a realidade é que ficaram presos na cidade. “Pagaram a alguém que já não pode responder pelo elo da cadeia, como eles dizem, mas continuam chegando”, explicou o sacerdote.

Nunca faltaram aproveitadores. Todos os dias, o INM marca 50 entrevistas com um cônsul norte-americano e apresentação do pedido de asilo.Isso não significa que consigam e na realidade a maioria não é aceita, mas ficam em Tijuana por duas razões: não querem voltar aos seus países e, ao mesmo tempo, o governo mexicano não pode expulsá-los, porque em muitos casos não mantém acordo de deportação com essas nações.

Porém, há algumas semanas soube-se que os passes, supostamente gratuitos, na realidade são vendidos por centenas de dólares. Muitos que já estão há algum tempo na cidade não puderam comprá-los, mas os recém-chegados sim. “Um dia chegaram a comprar mil. Foi quando os Estados Unidos suspenderam o trâmite”, descreveu Tamai. Presos na cidade, começaram a perambular pelas ruas. Algumas centenas foram para Mexicali tentar cruzar a fronteira por lá, mas também não conseguiram. “A guarita na fronteira ali é menor, logo a encheram e a porta foi fechada”, disse o ativista.

Enquanto isso, o problema social na fronteira se agrava a cada semana. Os recursos municipais para atender a população em situação de rua já acabaram, afirmou Tamai, e o governo de Baixa Califórnia não quer soltar dinheiro para evitar uma concentração maior de migrantes.A única saída é o governo federal destravar os recursos para atenção aos migrantes, cerca de US$ 15,7 milhões ) e enviá-los à fronteira para resolver o problema. Segundo Tamai, vai demorar, mas não vão esperar sentados. “Vamos fazer barulho, protestar para que soltem o dinheiro. Esta é uma crise humanitária”, afirmou.

*Este artigo foi originalmente publicado por En El Camino, um projeto da organização Jornalistas a Pé. A IPS – Inter Press Service tem um acordo especial com Jornalistas a Pé para a difusão de seu material.