Uma catástrofe chamada Haiti

Mais de mil mortos, até esta segunda-feira (10): outra tragédia se abate sobre o Haiti, desta vez graças às intempéries do furacão Matthew. O mesmo que atravessou Cuba, as Bahamas e outras regiões do Caribe, também a Flórida e outras regiões do sul dos Estados Unidos, fazendo muitos estragos, mas com poucas vítimas fatais, sem a dimensão catastrófica do Haiti.

Por Flávio Aguiar

Haiti - Reprodução

E as descrições se sucedem: um país sem infra-estrutura, e… sem infra-estrutura moral. O Haiti aparece quase sempre como um país de políticos corruptos, com um povo inerme, destituído de qualquer sentido de organização, enfim, uma catástrofe humana.

Mas… vamos olhar mais de perto esta tragédia, e com um óculo de alcance para o passado. Depois de uma guerra anti-colonial particularmente cruenta, em que os haitianos – na maioria negros ex-escravos revoltados – derrotaram exércitos da França, Reino Unido e Espanha, o Haiti tornou-se independente em 1º de janeiro de 1804.

Além de devastar o país, a guerra teve como efeito a devastação de sua própria liderança. A principal vítima desta devastação foi o líder Toussaint L’Ouverture, preso traiçoeiramente pelas tropas enviadas por Napoleão para reconquistar a ilha. As tropas napoleônicas, então vitoriosas na Europa inteira, amargaram uma derrota no Haiti. Mas Toussaint foi levado para uma prisão no maciço do Jura, no leste francês, onde morreu pouco depois de frio e provavelmente de tuberculose, além de outras doenças e desnutrição. Não é exagero considerar que ele foi assassinado pelo descaso de seus captores

Em consequência disto, o comando da revolução haitiana ficou nas mãos de uma casta militar aguerrida, mas despreparada para enfrentar o jogo geopolítico de então. A maior expressão deste despreparo foi o novo líder da revolução, Jean-Jacques Dessalines, que proclamou a independência, auto-nomeou-se imperador e deu início à formação de uma casta aristocrática nativa que terminaria por se livrar dele, assassinado em 1806 por sua própria guarda. Além disto, Desalinhes ordenou o massacre dos remanescentes brancos no país (que faziam parte de uma das mais cruéis castas em relação aos escravos), o que privou a nova nação de indispensáveis quadros com formação para gerir o aparato de Estado).

Apesar destes percalços, o Haiti desempenhou um papel fundamental na independência das colônias americanas em relação à Europa. Seu governo acolheu e financiou Simón Bolívar depois do fracasso de sua primeira tentativa de rebelião contra a Espanha. Desta forma o Haiti tornou-se o espantalho das Américas, pela ameaça lembrada de uma sublevação das massas oprimidas, e da Europa, pela ousadia de derrotar as potências de então. No Brasil o temor era maior, devido à manutenção do regime escravista para africanos, coisa que perdurou até o fim do século 19.

Em consequência disto, nenhum outro país reconheceu o Haiti durante décadas. Bolívar e as elites crioulas dos países hispano-americanos logo esqueceram sua dívida para com o Haiti. Os Estados Unidos também esqueceram, pois quando o país do Caribe era ainda uma colônia francesa, tropas negras lutaram a favor dos independentistas norte-americanos. Certamente a permanência do regime escravista no sul do país pesou neste “esquecimento”.

Seguiu-se uma série de humilhações internacionais. Depois das tentativas de reconquistar o Haiti, a França, com a presença de forte esquadra em suas águas, forçou o Haiti a reconhecer uma dívida impagável de mais de 100 milhões de francos em troca do reconhecimento diplomático. A dívida acabou sendo reduzida para 90 milhões, mas assim mesmo arruinou a economia do país até o final do século 19. Tornou-se moeda comum países europeus humilharem a república de ex-escravos por razões absurdas, até mesmo pela prisão e condenação de seus súditos em flagrante delito.

No começo do século 20, com a política de intervenção norte-americana no Caribe, uma nova devastação política se abateu sobre o Haiti. O país foi ocupado pelos Estados Unidos de 1915 a 1934. Logo depois de terminar a ocupação, o ditador Rafael Trujillo, da República Dominicana, iniciou uma política sistemática de massacre dos haitianos residentes na fronteira entre os dois países, que compartilham a mesma ilha. Entre 10 e 20 mil haitianos foram mortos nos primeiros momentos do massacre, e a matança continuou ao longo dos anos.

Esta fragilidade e o isolamento internacional do país ajudaram a criar uma situação de permanente instabilidade política interna, com uma sucessão de atos violentos que culminaram com a instalação da ditadura de Papa Doc (François Duvalier) a partir de 1957. Inicialmente popular e eleito constitucionalmente, Papa Doc passou a basear-se cada vez mais na repressão e nos paramilitares “Tonton Macoute”. Depois de sua morte, em 1971, foi sucedido por seu filho Jean Claude, o “Baby Doc”, até 1986, quando caiu e foi para o exílio na França. Um novo golpe militar, apoiado pelos remanescentes dos Tonton Macoute, estabeleceu novo regime ditatorial até 1990, quando o ex-padre católico, de tendência de esquerda, Jean-Bertrand Aristide, foi eleito. Derrubado por novo golpe militar, Aristide foi reconduzido ao poder por uma intervenção norte-americana em 1994, durante o mandato de Bill Clinton. Depois de duas eleições consecutivas, Aristide foi novamente eleito em 2000. Mas em 2004, já durante o governo de Bush Filho, novo golpe derrubou-o, e até hoje partidários de Aristide alegam que ele foi sequestrado por tropas norte-americanas em trajes civis e forçado a deixar o país, se exilando na África do Sul.

Desde então o Haiti tem estado sob intervenção de tropas da ONU, inclusive com a participação do Brasil. Mensagens secretas divulgadas pelo site Wikileaks trouxeram evidências de que os Estados Unidos gastaram milhões de dólares em campanhas para desmoralizar Aristide e impedir sua volta ao poder, apresentando-o como possível traficante de drogas, violador dos direitos humanos e praticante do Vudu. A política haitiana segue sendo instável, e o país é assolado periodicamente por catástrofes naturais, como o terremoto de março de 2010, que deixou mais de 300 mil mortos, e agora o furacão Matthew.

Mas não dá para esquecer que a principal catástrofe a se abater sobre o Haiti foi a de ter sido castigado multissecularmente por ser o único país em que uma revolta de escravos derrotou os escravistas locais e as potências internacionais que os apoiavam. Na segunda metade do século 20 e ainda no 21 a principal catástrofe que se abate sobre o Haiti é sua posição estratégica no Caribe, entre Cuba e a maioria das outras ilhas da região, que o tornou o alvo principal da política de isolamento e contenção da revolução cubana por parte dos Estados Unidos. Pode ser que com a política de reaproximação entre os EUA e Cuba isto venha a mudar.

Como uma reparação tardia, o nome de Toussaint Louverture foi incluído no Panteão dos heróis franceses, em Paris, numa placa, ao lado das cinzas de Jean Moulin, o herói da resistência anti-nazista, assassinado em 1943.