Virada ideológica amplia crise de socialistas na Espanha

A brusca virada ideológica do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), social-democrata e visto durante décadas como a força antagônica à direita na Espanha, preparou o terreno para um novo governo do conservador Mariano Rajoy. Enquadrada em uma crise mais profunda, a da social-democracia europeia, a grave situação do PSOE ameaça não só a sobrevivência dessa organização centenária, mas seu tradicional contrapeso no mapa político nacional.

Por Eduardo Rodríguez-Baz *

Pedro Sánchez, líder do PSOE

A poucos dias da reunião que foi considerada pelos próprios militantes e por terceiros como vergonhosa e lamentável, os socialistas enfrentam um dos piores capítulos em seus 137 anos de história, divididos, ainda que não o declarem publicamente, por um conflito ideológico de fundo.

A fratura aberta no grupo se tornou mais evidente que nunca nessa situação repleta de enfrentamentos e insultos, que culminou com a renúncia de seu líder, Pedro Sánchez, no dia 1º de outubro.

Depois de quase 12 horas de tenso debate, o Comitê Federal – máximo órgão de direção do PSOE entre congressos – votou contra o projeto de Sánchez de convocar primárias em 23 de outubro e um congresso extraordinário em novembro.

Mediante essa iniciativa, o até então secretário geral do principal partido da oposição pretendia que fosse a militância que decidisse nas urnas a dura controvérsia aberta na organização social-democrata sobre o futuro político da Espanha.

A renúncia do político, que em 2014 se converteu no primeiro líder socialista a assumir as rédeas da organização através do voto direto das bases, se deu no meio da paralisia institucional neste país, com um governo em funções desde dezembro de 2015.

Sua saída intempestiva, forçada por um setor crítico do PSOE favorável a permitir outros quatro anos de Rajoy no poder, do Partido Popular (PP) de direita, poderia abrir o caminho para a formação de um novo executivo e acabar com quase 10 meses de bloqueio político.

Ainda que sem dizer de maneira explícita, esse grupo dissidente que finalmente provocou a queda de Sánchez se declarou partidário de uma abstenção do PSOE no Congresso dos Deputados para permitir um segundo mandato do PP.

A insólita crise entre aqueles que apoiam e os que se opõe à continuidade de Rajoy se agravou depois da derrota dos socialistas nas eleições do 25 de setembro no País Basco e na Galícia, derrotas que os primeiros atribuíram a Sánchez, apesar da organização arrastar uma enorme perda de votos desde 2011.

Profundidade Ideológica

Com apenas dois anos à frente do PSOE, o jovem político admitiu a existência de um conflito ideológico em suas filas.

Há um problema de fundo e está sendo convocada a abstenção técnica para facilitar um governo de direita, afirmou dias antes do que muitos qualificaram de golpe de timão contra ele.

Considerou que seu partido estava 'jogando com o debate da abstenção não por uma questão tática, mas um assunto essencial para o futuro da socialdemocracia'.

Inclusive, disse preferir ter que ir a terceiras eleições – depois das duas que foram realizadas em dezembro de 2015 e junho deste ano – antes de permitir com sua inibição a continuidade do PP no governamental Palácio da Moncloa.

A alternativa que ele propunha era um executivo de coalizão com Podemos (centro-esquerda) e o centro-direita Ciudadanos, terceira e quarta forças respectivamente no Congresso dos Deputados.

Sobre as sucessivas derrotas eleitorais dos socialistas, Sánchez se perguntou se não teriam que ver com a implementação nos últimos anos de políticas muito próximas à direita encarnada pelos populares.

Mas sua proposta de primárias e de assembleia extraordinária fracassou no Comitê Federal, controlado agora por uma comissão gestora propensa a entregar a governabilidade ao PP e, com isso, começar um longa caminhada no deserto devido à sua enorme ruptura interna.

Comissão gestora assume as rédeas

Com a renúncia de Sánchez, uma comissão gestora assumiu as rédeas do PSOE, partido que mais tempo governou desde a restauração da democracia na Espanha, em 1977.

A profundidade da inédita rebelião protagonizada por um setor do grupo foi a rejeição aos planos do outrora secretário geral de submeter à consulta da militância sua convicção contra um novo executivo de Rajoy.

A Comissão desenvolverá funções executivas até a realização de um congresso federal extraordinário, no qual será eleita a nova Comissão Executiva Federal, indicou o partido em um comunicado, sem especificar a data dessa assembleia.

Esse órgão provisório, cuja criação era uma das reivindicações dos críticos do já ex-líder socialista, deverá decidir se facilita ou não a reeleição de Rajoy, faltando menos de um mês para que vença o prazo (31 de outubro) para formar governo ou convocar às terceiras eleições em um ano.

Ainda que tenha sido o mais votado nas duas convocatórias às urnas, o PP não conseguiu o apoio necessário para renovar mandato, ao obter 137 dos 350 assentos do Congresso dos Deputados, longe dos 176 estabelecidos como maioria absoluta.

O grupo conservador precisa, portanto, da abstenção do PSOE para garantir sua continuidade no Palácio de Moncloa, uma opção que Sánchez, encarregado de buscar uma administração alternativa à direita, se negou a apoiar até o final.

Segundo analistas, a nova liderança da principal força da oposição estaria disposta a deixar o PP governar, sendo que o partido já conta com o apoio de 32 deputados do Ciudadanos e de um representante do pequeno partido Coalizão Canárias, isto é, 170 assentos.

A direção interina socialista, que estabeleceu como meta 'sufocar o incêndio' que consome o PSOE, reconheceu que o 'não' ao PP está na medula dos militantes 'mais fervorosos', ainda que admitiu que, devido à falta de alternativa de governo, agora é necessária 'uma aterrissagem forçada'.

Podemos reivindica liderança

O líder do Podemos, Pablo Iglesias, reivindicou essa organização antiausteridade como a única oposição aos conservadores de Rajoy, perante um Partido Socialista que considerou desnorteado e em decomposição.

Iglesias fez assim referência ao racha que os socialistas vivem e o papel que corresponde à chamada formação púrpura em sua condição de terceira força política no país.

Ao intervir em um recente Conselho Cidadão Estatal, máximo órgão de direção do Podemos entre assembleias, o jovem professor universitário opinou que o resultado dessa ruptura dentro da centenária organização foi 'se colocar de joelhos perante o PP'.

Por esse motivo, reivindicou a Unidos Podemos – sua coalizão com a Esquerda Unida – como a única e real oposição ao PP chamada a governar mais 'cedo ou tarde', contra um PSOE 'desnorteado, velho e decadente', enfatizou.

O secretário geral do partido afirmou que os social-democratas, com sua possível abstenção a uma eventual tomada de posse de Rajoy como presidente do Governo, entregaram a eles 'todo o espaço de oposição'.

Depois disso, será muito difícil que os cidadãos achem que os socialistas são o partido antagônico ao PP, previu.

Em sua opinião, a luta pelo poder no PSOE e suas dúvidas sobre a abstenção ao PP evidenciam a renúncia, por parte dos socialistas, ao 'espaço simbólico' que ocuparam durante as passadas quatro décadas: a alternativa à direita.

Quando alguns se mostram divididos, fracos e incoerentes, é o momento de demonstrar que Podemos é o futuro, 'que estamos à altura e que debatemos de política a partir da fraternidade e da responsabilidade', afirmou Iglesias em óbvia referência às fortes diferenças dentro da social-democracia espanhola.