Ricardo Flaitt: Querem colocar terno no futebol dos trópicos

A partir do século 19 o Brasil intensificou a busca para estabelecer uma identidade enquanto nação. País colonizado por europeus, por mais que se tentasse determinar os traços de brasilidade e nossa originalidade, fato é que, da literatura aos comportamentos sociais, tudo se reproduzia enquanto cópia dos padrões europeus, nossa bússola civilizatória.

Por Ricardo Flaitt

Futebol de terno

Avançados dois séculos, do período Imperial à formação da República, o Brasil parece continuar imitando os conceitos europeus. O futebol, parte de um todo, reflete essa imagem distorcida de nossa ânsia por uma civilidade questionável.

A dependência econômica e cultural dos países latino-americanos projeta-se no mundo da bola, quando se tenta reproduzir a estrutura dos estádios e o comportamento das torcidas europeias.

No Brasil, a exclusão das torcidas nos estádios brasileiros, a cobrança para que os torcedores fiquem sentadinhos em seus assentos, a proibição da manifestação popular no entorno dos estádios, a negação do pernil da barraca, os altos valores dos ingressos que promovem um apartheid velado em um esporte de massa.

Esses elementos são reflexos, também, de nossa busca angustiante para nos aproximarmos das ligas europeias, desconsiderando completamente o contexto da realidade social, econômica e cultural brasileira.

Os estádios podem se transformar em arenas, mas as cidades e o público que estão em torno serão os mesmos, com as mesmas dificuldades, as mesmas desigualdades sociais. A arenas não são desconectadas da realidade, elas partem de nossa sociedade. Fora das arenas, no mundo real, o cenário da cidade não reflete o que se deseja ver.

O mesmo processo vem acontecendo na Confederação Sul-Americana de Futebol, que recentemente chegou a sugerir que a final da Libertadores fosse realizada em partida única, desconsiderando a realidade e contexto histórico dos povos latinos, as distâncias geográficas e, sobretudo, ignorando a cultura futebolística, que pode ser boa sem que, necessariamente, reflita o que vem de fora.

Há que se considerar que o padrão europeu que se busca é de ligas como da Espanha e Inglaterra, principalmente. Modelos que dão ampla margem para discussão, pois no futebol inglês existiram/existem os hooligans, na Espanha há casos explícitos de racismo com torcedores jogando bananas em campo, algumas estruturas dos clubes pequenos são até bem inferiores aos clubes brasileiros.

Outro ponto que reforça o errôneo recorte de nossas aspirações é que miramos para as grandes ligas, enquanto as manifestações de torcidas e as estruturas de futebol do leste europeu e na Rússia são completamente diferentes e muitas vezes omitidas para o resto do mundo, pois não atendem ao “padrão civilizatório” que tentam vender para o mundo globalizado. Mostram apenas parte de uma Europa.

Infelizmente os dirigentes sul-americanos não conseguiram ainda discernir que não dá para usar terno no calor dos trópicos e que sendo colonizados, a nossa originalidade só existe na antropofagia, no momento em que assimilamos os modelos europeus e fundimos uma nova concepção a partir da fusão do que vem de fora com o que está aqui em nossas terras. Assim nasceu o futebol no Brasil, com Charles Miller trazendo da Inglaterra uma bola, que nós dominamos, engolimos e superamos os seus criadores.

No entanto, os dirigentes seguem encantados e enganados como os índios seduzidos pelas flautas jesuítas.

Não há um exercício aqui para se estabelecer quem é pior ou melhor, mas sim pela compreensão de nossa formação histórica, de nossas raízes, nossa identidade, com nossa realidade, com tantos descaminhos.

*Jornalista e escritor