Sandra Helena de Souza: Os sem-vergonha

“A revolução tecnológica dos últimos anos permitiu a tod@s, ou quase, exprimirem-se sem reservas em seus perfis pessoais em redes sociais. As famosas caixas de comentários de portais e blogs nos revelaram o que os teóricos apontaram. Antes perfis anônimos, aos poucos à vontade para exporem-se com seus nomes próprios e cargos, como a prefeita americana”.

Por *Sandra Helena de Souza

Michelle Obama - Foto: Reprodução/TV PBS News Hour

“Estou farta de ver uma macaca de saltos”. Que frase, leitores. Ela foi tuitada por uma americana “distinta”, eleitora de Trump, festejando o fato de que agora teria uma primeira-dama loira e rica, como convém. O rebuliço nos EUA só adveio do retuíte de uma prefeita americana, que disse ter ganhado o dia depois de ler essa singela afirmação dirigida a ainda primeira-dama Michelle Obama.

A vergonha é uma ferida moral muito mais civilizatória que a culpa. Desde cedo pais e mães têm de lidar com a difícil tarefa de ensinar os filhos a não se bolinarem em público, por exemplo, quando muito infantes descobrem o prazer de se tocarem nas “partes”. Por falta de melhor argumento, a vergonha pública inicia o processo civilizatório, porta por onde entram as exigências de desculpas, pedidos de licença, agradecimentos e cumprimentos de praxe, obséquios aos mais velhos, obediência às normas e cumprimentos de etiquetas, essas tão caras aos salões e entrevistas de emprego.

Das normas básicas de etiqueta, seguem-se os costumes sociais mais amplos que envolvem os valores que a sociedade escolhe rejeitar de sua tradição e os que almeja estimular. É a dinâmica civilizatória que não se dá sem solavancos. Há uma tradição teórica exaustiva no século XX, depois dos horrores da segunda guerra e do holocausto em terras europeias, que desfez o dualismo entre civilização e barbárie: aprendemos que a civilização está assentada sobre dejetos humanos, brutalidades, sevícias e crueldades de toda ordem. Esses teóricos tomaram consciência de nossa animalidade selvagem constituinte como um dado incontornável e tentaram nos alertar para o perigo sempre à espreita. Atenção, pois.

A revolução tecnológica dos últimos anos permitiu a tod@s, ou quase, exprimirem-se sem reservas em seus perfis pessoais em redes sociais. As famosas caixas de comentários de portais e blogs nos revelaram o que os teóricos apontaram. Antes perfis anônimos, aos poucos à vontade para exporem-se com seus nomes próprios e cargos, como a prefeita americana.

Até aí, tudo parecia sob controle. Mas as condições econômicas e culturais de uma crise do capitalismo neoliberal em dimensão global e geopolítica trouxeram de volta os celerados da tradição humana mais nociva, anti-iluminista, segregacionista, racista, machista, fóbica de qualquer diferença normativa, e sobretudo elitista.

Sem pudores, sem mal-estar, gozando na típica agressividade dos impotentes, esses humanos menores que se recusam a uma maioridade emancipada emergem como os zumbis cinematográficos de suas cloacas com uma fúria vingativa contra os parcos avanços civilizatórios das últimas décadas, mundo afora, paradoxalmente usando um valioso instrumento dessas conquistas: a liberdade de expressão.

Foi com esse argumento que a Comissão de Ética (oi?) da Câmara Federal absolveu o deputado Jair Bolsonaro por fazer homenagem a um torturador em sessão pública em rede nacional.

A tortura é crime imprescritível contra a humanidade. E daí, não é mesmo? Isso não chegou aos nossos esgotos. A prefeita americana teve que se retratar pelo racismo. Entre nós, apenas a vergonha. Ou a falta dela.

*Sandra Helena de Souza é Professora de Filosofia da Unifor; membro do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Política, Direito e Democracia (ILAEDPD)

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