Carlos Azevedo: 16 de dezembro, Rua Pio XI, 767

O ano de 1976 estava sendo bom para o PCdoB. Trabalhávamos animados porque a resistência contra a ditadura militar crescia em toda parte.

Carlos Azevedo

Uma ampla frente pela democratização ia se formando e o regime ia rachando por dentro. Uma vigorosa imprensa alternativa florescia, centenas de pequenos jornais, muitos deles estimulados pelo nosso partido, surgiam nas escolas, nos sindicatos, nas associações de trabalhadores por todo o país. Trazia o relato das lutas populares em cada recanto, das fábricas aos canaviais e aos seringais, nas universidades e associações de moradores. A força e o prestígio dessa imprensa empurravam a grande imprensa, forçavam-na a divulgar os fatos. O movimento pela anistia tomava corpo junto com a campanha pela constituinte e ambos levavam multidões entusiasmadas a plenários, auditórios, salas de aula, salões paroquiais…

No Exterior, na França, Portugal, Itália, Alemanha, Suiça, e também nos Estados Unidos, os exilados e asilados políticos brasileiros formavam uma rede crescente de publicações e de apoiadores que denunciavam os crimes da ditadura brasileira e obtinham grande repercussão na sociedade.

Nós do Partido estávamos animados. O PCdoB se recuperava dos golpes da repressão no Araguaia e nas cidades, reorganizava suas forças e encontrava recepção positiva nos meios sociais.

Aldo Arantes e eu éramos a Comissão Nacional de Propaganda e trabalhávamos intensamente produzindo materiais – jornais, boletins, panfletos etc. – que iam por caminhos subterrâneos a setores cada vez mais amplos, no país e no Exterior. Eu, mesmo mergulhado numa clandestinidade profunda, conseguia publicar algumas matérias no jornal Movimento, jornal da frente democrática muito respeitado e acompanhado atentamente tanto pelos setores de oposição democrática, mas também pelos detentores do poder, que mantinham a censura prévia sobre ele. Cada jornalista estrangeiro, cada defensor dos direitos humanos, da anistia internacional, que visitava o Brasil, fazia uma passagem obrigatória pela redação de Movimento. Para se informar.

Por tudo isso, 1976 estava sendo um ano brilhante. Em junho, acompanhado de Aldo Arantes, fui admitido a uma reunião com o birô político – João Amazonas e Pedro Pomar estavam lá – naquela casa da rua Pio XI, 767, onde cheguei de olhos fechados num carro que me pareceu um Volkswagen.

Ali, participei das discussões por dois dias (dormi uma noite na casa) e traçamos planos para a propaganda do Partido no período seguinte. Seis meses depois, no começo de dezembro, Aldo e eu tínhamos realizado a maior parte do que fora planejado. Lembro-me de ter trabalhado muito no período. Num último encontro de rua com Aldo, se não me engano, por volta de 13 e 15 de dezembro, passei a ele minha contribuição para a proposta de planejamento para o ano de 1977, que se anunciava muito promissor. Ele ia levar nossa proposta para a reunião do Comitê Central, então prestes a acontecer.

Eu me sentia exausto, mas também muito satisfeito. Sabe aquela sensação de dever cumprido? Era assim. Por isso, no dia 16 resolvi descansar. Junto com minha companheira, Maria Lucia, e meus filhos menores, Luciano, 11 anos, e Ana, 7, fomos fazer compras de Natal (Rogério, o mais velho, não pode ir. Trabalhava e fazia cursinho). Passamos a maior parte do dia comprando presentinhos, roupas, e comida para o mês. De volta à casa, excepcionalmente não liguei o rádio. E à noite, ficamos contando histórias, também não liguei a televisão.

Nossa casa na clandestinidade era numa ruazinha da Vila Industrial, em Campinas. Fui dormir cedo porque na manhã de 17 teria que encontrar Aldo no jardim do Museu do Ipiranga, em São Paulo, quando deveríamos discutir as decisões tomadas pela reunião do Comitê Central.

Saí de casa um pouquinho atrasado. Tinha que pegar a litorina, o trem rápido para a Capital, cujo horário de partida, herança do tempo da administração inglesa, era às 6 horas e 36 minutos. E saía mesmo na hora. Da minha casa até à estação era uma caminhada de uns 15 minutos pela rua Sales de Oliveira e em seguida por um túnel, que ainda existe, passando por baixo da estrada de ferro. Fui andando depressa, cheguei a tempo. Parei um instante na banca de jornais da estação, comprei o Estadão. Corri, atravessando a plataforma, e pulei dentro do vagão quando as portas se fechavam. Bem na minha frente havia um lugar vazio num banco. O trem partia. Sentei, relaxei e abri o jornal.

Estava ali, na primeira página, a reunião do PCdoB havia sido atacada pelo Exército. Havia mortos e presos… Dizer que foi um espanto é pouco, muito pouco. É mais razoável falar de uma sensação de atropelamento, de estupor, de um prédio que cai sobre a sua cabeça. Li a reportagem com dificuldade, sentindo uma dor profunda. Nada a fazer. O trem só iria parar em Jundiaí, 40 minutos mais tarde. Desci. Fiquei na estação, andando de lá pra cá pela plataforma, à espera do trem de volta, que só passaria uma hora depois.

Voltei para casa aturdido. Lembro que fazia uma manhã belíssima, de um céu azul profundo. Que medidas de segurança tomar? Haroldo e Aldo sabiam que eu morava em Campinas. E só. Não conheciam o endereço. Decidi ficar na casa. E, de fato, jamais a repressão chegou até nós.

Segui as orientações do Partido: “Não procure o Partido, aguarde que o Partido entrará em contato”. Enquanto isso, me comprometi a trabalhar duro e trabalhei. Dois anos se passaram, depois de dois livros elaborados, de numerosas matérias para Movimento, depois de dezenas de artigos de “A Classe Operária” gravadas desde a Rádio Tirana, degravadas e distribuídas em folhas de papel muito finas para vários endereços, depois de dois anos, o Partido entrou em contato.

Foi assim, segundo o que me lembro.