Povos indígenas: A volta do grupão 

No dia 18 de janeiro, foi publicada, no Diário Oficial da União, a Portaria nº 68/2017, em que o Ministro da Justiça e Cidadania, Alexandre de Moraes, autoriza a criação do Grupo Técnico Especializado (GTE), que altera o atual modelo de demarcação de terras indígenas, vigente desde 1996.

*Por Luciana Nóbrega e Gustavo Guerreiro

Governo Temer planeja rever demarcação de terras indígenas

A portaria surge com intuito de “fornecer subsídios em assuntos que envolvam demarcação de terra indígena”. Determina que seja criado um Grupo de Trabalho Interinstitucional – GTE, composto por representantes da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da Consultoria Jurídica e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, além da própria Funai.

No início dos anos 1980, no crepúsculo da ditadura militar, o governo de João Figueiredo editava o Decreto nº 88.118/83, instituindo o chamado “Grupão”, grupo interministerial formado por representantes do Ministério do Interior, Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, Fundação Nacional do Índio, e de outros órgãos federativos “julgados convenientes”. Sua missão era emitir pareceres sobre os territórios identificados e delimitados pela Funai nos processos de demarcação. O parecer era encaminhado ao Ministro do Interior e ao Ministro Extraordinário para Assuntos Fundiários para deliberação. Até 1991, a Funai permaneceu vinculada ao Ministério do Interior.

Em uma evidente atuação em prol de demandas anti-indígenas, o Grupão conseguiu estagnar as demarcações e homologações. O objetivo era retirar da Funai a autonomia do processo de demarcação das terras indígenas. A avaliação foi feita pelos antropólogos João Pacheco de Oliveira Filho e Alfredo Wagner B. de Almeida em um artigo de 1984, intitulado “Demarcações: uma avaliação do GT-Interministerial”, publicado no periódico “Povos Indígenas no Brasil”, publicado pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação –CEDI.

A portaria editada pelo Ministro do governo Temer é a reaparição de um fantasma do autoritarismo, que assombra o próprio Estado democrático. O atual processo de demarcação, conforme previsto no Decreto nº 1775/96, atende aos ditames constitucionais inseridos no art. 231 e 232 da Constituição Federal, assegurando, ainda, o cumprimento do direito ao contraditório a à ampla defesa em todas as fases processuais. No entanto, recebe duros ataques das frentes parlamentares ligadas ao agronegócio. O mais perverso se estabelece na Proposta de Emenda Constitucional nº 215/200, a PEC 215, que transfere ao Congresso Nacional a palavra final sobre as demarcações. É a principal bandeira contra a qual se organiza e se mobiliza o movimento indígena em âmbito nacional.

Sem diálogo com as instâncias representativas dos povos indígenas, servidores e entidades indigenistas (governamentais ou não) e carecendo de legitimidade, o governo Temer demonstra a que veio em matéria de política indigenista. Evitando se expor a um desgaste interno e internacional com a PEC 215, subverte a Constituição e a própria Convenção 169/OIT através de estratégias técnico-jurídicas travestidas de um falso caráter republicano. Se assim tem ocorrido em assuntos indigenistas, imagine o que esse mandato, que não está a serviço do sufrágio popular, pode fazer com os demais interesses do povo, tais como as já anunciadas reformas da previdência, trabalhista e outras que ainda virão.

Mas não é só ressuscitar o grupão que preocupa. A centralidade que a Portaria nº 68/2017 dá à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme previsto no art. 4º, VI, vai além do estabelecimento de uma nova instância ao longo processo de demarcação de Terras Indígenas. O cumprimento dessa jurisprudência, leia-se as 19 condicionantes e a tese do marco temporal de 1988, previstas no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Petição nº 3388) pelo STF, passarão a ser elementos verificados pelo GTE para fins de manutenção da identificação e delimitação da Terra Indígena, conforme propostos pela Funai.

Ocorre que não há consenso, nem no principal Tribunal do país, acerca da adoção das 19 condicionantes e da tese do marco temporal nos demais processos de demarcação e identificação de Terras Indígenas, havendo o entendimento de que elas só valem para a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Logo, ao inserir o dispositivo que determina a averiguação do cumprimento da “jurisprudência do STF sobre a demarcação de Terras Indígenas”, o Ministério da Justiça e Cidadania foi além do que o decidido pelo próprio STF, adotando interpretação extremamente restritiva dos direitos assegurados aos povos indígenas tanto em matéria constitucional como em convenções e tratados internacionais. A Funai está vinculada a esse Ministério, o qual deveria, por consequência, assegurar a promoção e a proteção dos direitos dos povos indígenas.

Não há motivos patentes para que se institua mais um ente burocrático para tratar de procedimentos e direitos já tão desrespeitados historicamente. Tal como em 1983, não se observa, senão a própria inviabilização dos direitos mais fundamentais aos povos originários e sobre o quais se erguem políticas essenciais. Diante desse quadro, o Ministro da Justiça e Cidadania cumpre seu papel no cenário de Holocausto brasileiro. Não o faz movido pelo anti-indigenismo, nem pela maldade pura, mas por uma combinação de um tecnicismo “neutro”, como se houvesse neutralidade na escolha de um lado em detrimento de sua missão institucional, que é assegurar os direitos dos povos indígenas. Instituído novamente o Grupão, relembramos a frase de Marx, na abertura do seu Dezoito Brumário: a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

*Luciana Nóbrega (advogada) e Gustavo Guerreiro (sociólogo)