10ª Bienal da UNE debate o Nordeste e a reinvenção do Sertão

A segunda-feira (30), segundo dia da 10ª Bienal da UNE, começou com mais atividades culturais, cortejos e debates. A primeira mesa de debates, realizada no Palco da Praça Verde Historiador Raimundo Girão, abordou “A Reinvenção do povo brasileiro com olhar no sertão”. Passado presente e futuro, com olhares da literatura, da sociologia e da vivência foram apresentados durante o encontro.

10ª Bienal da UNE debate o Nordeste e a reinvenção do Sertão

Paulo Linhares, presidente do Instituto Dragão do Mar, iniciou sua intervenção destacando que, apesar de ter estudado a cidade com perspectiva para o mar, a dialética com o sertão sempre esteve presente em suas pesquisas. “Fortaleza cresceu de costas para o mar, e só na década de 1960, ela volta-se para a praia”, pondera.

Citando escritores brasileiros, Linhares aprofunda a importância do sertão na construção do povo brasileiro, dentre eles o cearense Capistrano de Abreu, “o primeiro pensador brasileiro que pensou o sertão a partir de suas pesquisas sobre o Ceará, de como se deu o povoamento desta região”. Segundo Linhares, baseado nos estudos de Abreu, o povoamento desta região, dado pela pecuária, e o menor uso da força dos escravos formou “nosso povo diferente, com sociedade diferente, fala diferente e até comidas diferentes”.

Caio Prado também foi citado por Linhares ao defender a ideia de que o Brasil tinha na pecuária do sertão, o consumo voltado para o mercado interno. Já Josué de Castro, acrescenta Paulo, destacou o regime alimentar da região do sertão. “Com a dieta baseada no milho, no feijão e carne, itens de grande qualidade, ele nos mostra que o que provocava o desgaste no sertanejo é o clima e a seca e não a alimentação”. O quarto escritor citado por ele foi Euclides da Cunha que, em Os Sertões, apresenta uma visão positivista da República e compreende um país desigual, “reforçando a presença do sertanejo e do sertão”.

Sertão e a literatura

Para Leonardo Guelman, superintendente do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Interculturalidades, a literatura permitiu que o sertão “deixasse de ser o fundo da paisagem para surgir como constituição do Brasil”. Ele abordou a gênese da palavra sertão, destacando que “ela carrega a força do singular e do plural”. A temática que povoa a maioria das pessoas que não são da região, destacou, beira o imaginário. “O sertão é ligado à terra quente, ao chão rachado e à seca, mas é preciso pensá-lo como espaço paradigmático: Existe o sertão visto pelo sertanejo e também o sertão visto de fora”. Voltando a citar Euclides da Cunha, desta vez com Canudos, Guelman considera semelhanças com os dias atuais. “Tem a ver com o contexto que vivemos hoje: o Brasil oficial não quer ver nem reconhecer o Brasil real. Grande parte da política atual é cúmplice e ignora o potencial do povo brasileiro, que permanece invisível, negado e colocado sempre à margem. E o sertão guarda grande parte desta potêencia”. Escritores como Guimarães Rosa, José de Alencar, Ariano Suassuna e Patativa do Assaré também foram citados por Guelman. “O sertão se converte em metáfora para a gente pensar este dois ‘Brasis’”. Ele abordou ainda a necessidade de toda a região ser tratada com respeito, sem que seja “atacado e modificado”. “Nosso povo não pode ser solapado e estar entregues às forças do desenvolvimento, que preconiza o grupo de determinados grupos. O agronegócio transformou a vida do povo do sertão. O cavalo deu lugar à moto. Eis nosso momento de resistência e de re-existência”, defende.

Vivenciando o Nordeste

Potiguar de Mossoró, Conceição Dantas, representante da Marcha Mundial das Mulheres, falou sobre sua experiência vivida no sertão, desde a década de 1980. “Falo como mais uma de milhares lutadoras do sertão. Sou do tempo da lamparina, quando não tinha cisterna, quando os saques aos comércios eram nossa única forma de sobrevivência. Sou do tempo que o povo resistiu, com mulheres sempre nas frentes dos conflitos”. Com o tempo, reforça Conceição, o povo viu que eram necessárias alternativas para reinventar o Nordeste. “Daí alteramos o paradigma da seca. Não queremos combatê-la, mas aprender a conviver com ela. Foi quando deixamos de esperar as migalhas para alterar o modelo de desenvolvimento que seja capaz de fazer com que vivamos bem no sertão. Ele não é só clima: é gente, povo, alegria e sabemos que somos capazes de conduzir nosso próprio destino”, enaltece.

Com os governos de Lula e Dilma, que investiram em programas sociais e políticas públicas como o Bolsa Família e o programa de construção de cisternas, o povo foi criando a cultura de estoque. “Passamos a armazenar comida e água, para nosso período de estiagem. Com eles, vieram a superação da fome, o fim da migração social e a elevação do Índice de Desenvolvimento Humano em toda a região. Mas a principal reinvenção foi a capacidade de acreditar em nós mesmos. E é isto que está com este novo governo”, alertou citando como exemplo a ameaça ao Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS), que “volta a ser entregue às oligarquias do Nordeste, resgatando a lógica da industria da seca”. Conceição encerrou sua participação alertando que “o nosso papel para o agora e para o futuro é reafirmarmos que não vamos admitir nenhum direito a menos no nosso sertão e que devemos nos fortalecer ainda mais”.

Apesar de ser poeta, escritor e sindicalista, Pedro Laurentino fez questão se ser identificado como militante que lutou contra a Ditadura Militar. “Nós fizemos parte da chapa O Mutirão, em 1979, e ajudamos a reconstruir a UNE. Participar deste encontro é como ver um filme na cabeça da gente”, falou emocionado. Sem formação superior, Laurentino disse que sua formação vem da prática, da luta diária. “Eis o segredo do reinventar. Se há algo que o una todo o povo brasileiro ao longo de sua história é a luta contra a opressão”. Ao contextualizar o local que sedia a Bienal da UNE em Fortaleza, Laurentino exemplificou mais uma dessas lutas. “Chico da Matilde, o Dragão do Mar, tornou-se símbolo da luta do cearense contra a escravidão. Em função disso, o Ceará tornou-se o primeiro estado do Brasil a decretar a abolição da escravatura. A conquista não veio pelas mãos de uma princesa. Mas dos negros, mulatos e pobres”, ressaltou.

Sobre a miscigenação do povo brasileiro, ele considera que não foi também acolhida sem luta. “Costumo dizer que foi um estupro coletivo. As relações do branco com índios e negros foram resultado de agressões. As mulheres eram violentadas na taba e nas senzalas mas, daí, surgiu um povo valoroso, combativo, mas nunca compassivo”, considera. Ele citou, dentre tantos outros, Chico da Matilde, Olga Benário, os guerrilheiros do Araguaia e tantos outros lutadores do povo brasileiro e reforçou: “É por aí que temos que reinventar o povo brasileiro”.

Laurentino encerrou sua participação conclamando a juventude a permanecer na luta e honrar todas as gerações que os sucederam na batalha. “Sou de uma geração que viveu, sofreu, sangrou e morreu na Ditadura Militar, mas que se levantou contra a opressão. Vocês, que receberam este legado de liberdade e de democracia, têm que lutar contra a cultura do ódio. Não pensei em viver e ver um parlamentar fazer apologia a um torturador e não lhe acontecer nada. Não podemos compactuar com isso. Essa nova geração tem o dever de resgatar os valores que parecem ter ficado para trás e a UNE é deve voltar a pulsar nos corações de todos os estudantes”, defendeu.

Após as intervenções, a plenária foi aberta para a participação dos estudantes que encheram a praça verde do Dragão do Mar para acompanhar os debates.