Rosemberg Cariry: Canudos, a longa agonia

"Em 2017, comemoram-se 120 anos da Guerra de Canudos. Ao lembrar-me desse fato, rememoro o colonialismo mental forjado sob a influência do pensamento positivista no Brasil. Uma moda seguida por uma elite nacional europeizada, uma prova de que pensamentos mal digeridos, aplicados a outras realidades, culturas e processos civilizatórios, sem passar por sérios questionamentos, podem resultar em tragédias e graves crises humanitárias”.

Por *Rosemberg Cariry

Guerra de Canudos

Em 2017, comemoram-se 120 anos da Guerra de Canudos. Ao lembrar-me desse fato, rememoro o colonialismo mental forjado sob a influência do pensamento positivista no Brasil. Uma moda seguida por uma elite nacional europeizada, uma prova de que pensamentos mal digeridos, aplicados a outras realidades, culturas e processos civilizatórios, sem passar por sérios questionamentos, podem resultar em tragédias e graves crises humanitárias.

Foi o que aconteceu com Canudos. A jovem República positivista, ao destruir o arraial de Belo Monte, atingiu em cheio o Brasil real para construir um outro idealizado, segundo os parâmetros “civilizatórios” europeus. A sua fúria destrutiva contra uma simples comunidade autogerida de sertanejos pobres foi justificada via republicanismo (francês e norte-americano) que inspirou o modelo brasileiro; iluminismo racionalista, cientificista e fatalista da história e evolucionismo social, de inspiração darwiniana. Unidos para alimentar a ambição do lucro, esse ideário teria permanência garantida por boa parte do século XX, sob a indumentária de novos modismos, com teor neoliberal e tecnológico, submetidos aos mesmos interesses da soberana economia internacional-ocidental.

Quem destruiu Canudos – mais do que os canhões Krupp alemães e as tropas armadas de fuzis G’88 e metralhadoras Nordefelt – foi o ideário da elite-papagaio, educada para engolir o “positivismo” como pensamento formador de uma mentalidade incapaz de um esboço crítico à ideologia e aos interesses da “metrópole”.

No Rio de Janeiro, então capital da República, passada a orgia comemorativa e as patriotadas, os pobres soldados, rotos e famintos, sem terem moradias decentes, foram obrigados a ocupar os morros e os batizaram de “favelas” em homenagem ao Morro da Favela de Canudos, de onde posicionaram os canhões no bombardeio incessante à cidadela camponesa de Belo Monte, até a sua exterminação total.

Em São Paulo, as tropas de brasileiros pobres do exército nacional desfilaram pelas ruas, sendo saudadas com bandas tocando a Marselhesa, quando passaram em frente ao consulado francês. Supremo orgulho para a jovem República positivista, que tinha as mãos sujas de sangue. Se ontem era o positivismo, hoje é o neoliberalismo a imperar, como forma perversa de cegueira e alienação.

A Guerra de Canudos se prolonga, ainda visível, nos dias de hoje. O escritor e dramaturgo Ariano Suassuna põe o dedo na ferida aberta, quando escreve: “Em todos os lugares. Em todos os campos de atividade. Diariamente, incessantemente, […] o Brasil (oficial) dos que incendiaram e arrasaram Canudos está atirando no Brasil real e matando seu povo”. Diante do massacre sem fim dos que estão embaixo, uma pergunta se impõe: com qual hino o neoliberalismo contemporâneo saudará as vítimas dessa política cruel e as novas procissões de miseráveis?


*Rosemberg Cariry é cineasta e escritor

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