Publicado 10/02/2017 19:22

Para ser sincero, deveria escrever “agora que a festa acabou, e a ressaca é uma absoluta estupidez, que não deixa a gente ir além de um ‘agora que a festa acabou’….”. Para ser menos burro, procuro ouvir o CD Passarim, de Tom Jobim. Bebel, Borzeguim, Isabella vão passando. É o velho novo Tom renovando o peito da gente. Súbito, paro. Ouço uma voz entre a brincadeira e a seriedade:
“Un, deux, trois”, e vem um coro feminino, e começo a ouvir uma conversa melódica de Tom, entre a brincadeira e a seriedade mais uma vez:
The immigration officer asked me
Where have you been, Mr. Bim?
Where have you been, Joe?
You’ve been abroad for too long, Mr. Bim,
Haven’t you been?
I got to the hotel exhausted to my room
Having to attend a cocktail
Late that afternoon
And there my boss Nesuhi,
An old friend of Jobim’s, said:
May I introduce you to Gloria?
By all means
Buy all jeans…”
E vem então uma melodia que é um estender-se de Tom ao piano, uma canção que acende na gente uma melancolia tão doce quanto letal:
I’ve never drank a Scotch with this bouquet
My life is such a mess let’s have a Brahma
I’m happy that you called,
I really feel touché
Oh, it’s been a long, a very long time
Since a Brazilian has been in Paris com você”
E vêm uns acordes breves do piano que são uma impressão digital de Tom, que remetem a Wave, que remetem a Águas de Março, que remetem à voz nos dedos do Jobim maduro. Então ele retoma, num prolongamento, numa repetição com outras palavras:
You look so sexy with my pince-nez
Let’s highjack this Concord to the Bahamas
Come on dress up my love
Let’s go to the ballet
Oh, it’s been a long, a very long time
Since a Brazilian has danced with you
Le pas-de-deux”.
Por que a gente lembra e insiste em lembrar uma canção de versos tão bobos? Esqueçamos por ora a lição antiga de que a letra na música não tem vida própria, autônoma. Esqueçamos que os estruturalistas, quando reclamam a primazia absoluta do texto, são tão medíocres quanto estreitos e amesquinhadores. Esqueçamos. Un, deux, trois. E volta a melodia:
I’ve never drank a Scotch with this bouquet
My life is such a mess let’s have a Brahma…”
Isso exigiria uma descida até o nascimento da arte nas sociedades mais primitivas, quando a religião, a invocação aos deuses anímicos era ao mesmo tempo uma representação do sonho humano. Isto exigiria ainda o relato da experiência viva, que temos observado ao longo do tempo. Não, agora é começo do ano. O que importa agora é dizer: a brincadeira, a piada de Tom, sobre uma sua chegada a Nova York, traz para nós, seus sobreviventes, a luz da precariedade da vida humana.
I really feel touché
Oh, it’s been a long, a very long time
Since a Brazilian has been in Paris com você.”
A alegria de ter um compositor como Tom no começo do ano. A tristeza ao mesmo tempo de saber que a morte é a lei. Oh, its been a long, a very long time que aprendemos que só nos resta ser ternos, que somente a ternura é nossa eternidade. Oh, esse Mr. Joe Bim deixa a gente sentimental a ponto do peito estremecer.
Feliz chansong, amigos.