O novo modelo de "cotas" da Globo: um avanço estagnante

O surgimento do Esporte Interativo na disputa pelo mercado das transmissões dos jogos do Campeonato Brasileiro de futebol (na TV fechada) e a sua proposta inovadora (para o contexto nacional) de distribuição dos recursos semelhante à da Premier League (50%-25%-25%) fez com que a Rede Globo se sentisse ameaçada em um reduto que monopoliza(va) há tantos anos.

Emanuel Leite Jr.*

Futebol - Foto: Torcedores.com.br

Em fevereiro de 2016, o blog do Rodrigo Mattos confirmava que a emissora da família Marinho pretendia mudar a divisão das cotas, modelo que foi confirmado no último dia 25 de março e que propõe a seguinte divisão: 40% igualitariamente, 30% de acordo com o rendimento desportivo e 30% tendo como base o número de jogos transmitidos. Um avanço? É evidente que sim. Entretanto, como diz o provérbio, “o diabo mora nos detalhes". E é nos detalhes que vemos como os clubes brasileiros estão desperdiçando a oportunidade de tornarem a distribuição dos recursos da TV mais próxima do ideal da “justiça como equidade", preconizada por John Rawls. São os detalhes do contrato que nos mostram como este novo modelo da Globo é um avanço, mas, com seu caráter reformista, impede a revolução no sistema até, pelo menos, 2025. Um avanço, portanto, estagnante.

Em meu livro “Cotas de televisão do campeonato brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização", busquei analisar à luz do Princípio da Isonomia (igualdade) a questão da distribuição dos recursos televisivos no nosso futebol. Constatei uma realidade que comparei a uma segregação entre clubes “grandes" e “pequenos", que contribui para o engessamento da mobilidade entre os clubes. Em analogia ao que Cristovam Buarque denominou de “apartheid social" ao descrever as desigualdades de um mundo composto por “incluídos" (ricos) e “excluídos" (pobres), estabeleci o termo “apartheid futebolístico": a concentração dos recursos no futebol brasileiro estabelecia uma lógica excludente, gerando também clubes “incluídos" e clubes “excluídos". Ainda na análise à Igualdade como um fundamento basilar do sistema democrático, busquei em John Rawls e seu ideal de “justiça como equidade" o alicerce argumentativo para tentar apontar qual o modelo de distribuição existente no futebol é aquele que assegura a menor desigualdade entre os competidores de um campeonato.

De forma bastante resumida, evitando entediar o leitor com uma revisão teórica mais densa, Rawls preconiza que “a sociedade constitui um sistema de cooperação social equitativa entre pessoas livres e iguais" e que “a teoria da justiça como equidade é uma concepção da justiça válida para uma democracia". A justiça como equidade busca concretizar valores essenciais da democracia, a saber, a liberdade e a igualdade. Para este proeminente intelectual do liberalismo igualitário, “a teoria da justiça como equidade parte da ideia de que a sociedade deve ser concebida como um sistema equitativo de cooperação".

A ideia de “cooperação social" na busca da efetivação da liberdade e da igualdade é bastante enfatizada por Rawls, que chama a atenção para que “as vantagens produzidas pelos esforços de cada um sejam equitativamente adquiridas e distribuídas de uma geração para outra" e que todos envolvidos na cooperação devem objetivar a “vantagem racional" de cada interveniente, com base nas duas faculdades morais que ele apresenta: senso da justiça e concepção do bem. Rawls ainda chama a atenção para a necessidade de que a divisão dos recursos trate todos os intervenientes de modo equitativo, não permitindo “que alguns tenham mais trunfos do que outros na negociação".

Peço desculpas pela introdução teórica, mas entendo que ela é essencial para esta discussão, uma vez que nos permite perceber qual modelo de negociação se aproxima mais do ideal de “cooperação social" negociação individual como no Brasil ou negociação coletiva como nas cinco maiores ligas europeias?), bem como em que tipo de negociação se pode obter um acordo em que haja “vantagem mútua" entre todos os envolvidos e, também, em que modelo de negociação e divisão dos recursos todos os intervenientes se tratam de modo equitativo e não é permitido “que alguns tenham mais trunfos do que outros na negociação".

Partindo da conclusão de que as negociações coletivas são mais benéficas à coletividade (como demonstro em “Cotas de televisão do campeonato brasileiro…"), passemos, então, à análise do caso concreto – o novo modelo de divisão das “cotas" da Globo. De que modo se deve proceder à divisão dos recursos a fim de se preservar a isonomia e a competitividade? Quais critérios de divisão se aproximam da equidade?

As cinco maiores ligas nacionais da Europa em faturamento – Premier League, Bundesliga, La Liga, Serie A e Ligue 1 – adotam o modelo de negociação coletiva. Corroborando a orientação da Comissão Europeia, que entende que as negociações coletivas tornam a “competição mais atrativa, uma vez que as equipes competem em um contexto de maior igualdade de oportunidades" e proporcionam “uma maior estabilidade financeira para as equipes de futebol, devido a uma melhor redistribuição dos dividendos da televisão". Contudo, cada uma delas tem seu próprio critério de distribuição dos recursos. Sendo que a que mais se aproxima do ideal de “justiça como equidade" de Rawls (sem o atingir, frise-se) é a Premier League inglesa, enquanto a Serie A italiana é, atualmente, a mais desigual do top 5 europeu. E o modelo proposto pela Globo se assemelha mais com o italiano do que com o inglês.

Terceira maior liga desportiva em faturamento no mundo, atrás apenas da National Football League (NFL, liga de futebol americano) e Major League Baseball (MLB, liga de beisebol norte-americana), na Premier League os valores obtidos pelas vendas aos mercados doméstico e externo são distribuídos de modo diferente. O faturamento das negociações no exterior é partilhado de forma 100% igualitária (aí, sim, em sintonia com o ideal “Rawlsiniano") – o que rendeu £29.415.848 milhões para cada um dos 20 participantes em 2015/16. Já o dinheiro do mercado nacional é dividido em três partes:

• 50% divididos igualitariamente entre todos os clubes

• 25% baseados na classificação final da temporada anterior (o campeão recebendo 20 vezes mais o valor que recebe o último classificado)

• 25% variáveis de acordo com o número de jogos transmitidos na televisão

Este modelo permitiu, por exemplo, que o Leicester, fenômeno que fez história ao se sagrar campeão, tenha encaixado £93,2 milhões, enquanto o vice-campeão Arsenal, com 27 jogos transmitidos ao vivo (12 a mais que os campeões), tenha sido o primeiro clube a romper a barreira dos £100 milhões: £100,9 milhões. A diferença dos Gunners, no topo da lista dos que mais ganharam, para o último colocado do campeonato e da lista, Aston Villa, foi de apenas 1.51:1, já que o clube da cidade de Birmingham recebeu £66,6 milhões. A expectativa é de que em 2016/17, primeiro ano em vigor dos novos contratos de TV, todos os 20 clubes da EPL recebam no mínimo £100 milhões.

Vale observar, todavia, que apesar de ser a liga com distribuição menos desigual, o modelo inglês não se livra de críticas. Clubes tradicionais como Tottenham, Newcastle e Aston Villa (estes dois últimos foram rebaixados na temporada 2015/16) vez ou outra reclamam das detentoras dos direitos de transmissão da Premier League, por sempre priorizarem Man. United, Liverpool, Chelsea, Arsenal e Man. City, gerando, assim, uma disparidade na repartição dos 25% correspondentes aos jogos transmitidos.

Esta crítica nos leva ao modelo proposto pela Globo. É importante salientar que não está claro como será a divisão dos tais 30% das transmissões, entretanto certamente haverá de levar em conta transmissões locais (menor impacto) e transmissões nacionais (maior impacto). No caso das transmissões nacionais, vale levantar o questionamento: haverá uma priorização de Flamengo e Corinthians? Clubes de abrangência regional – ou seja, todos aqueles fora do “eixo" (pernambucanos, paranaenses, goianos, baianos, por exemplo) – certamente deverão ficar com um percentual bem menor em relação aos clubes de impacto nacional. Parece-nos claro que este se tornará um fator inequívoco de distorção na distribuição dos recursos.

Apesar do questionamento feito por clubes como Tottenham, Newcastle e Aston Villa, o modelo de divisão inglês é aquele mais próximo (mas que não se configura em sua plenitude) do ideal de justiça como equidade de Rawls. Não por acaso, é o formato ambicionado por vários clubes franceses, que têm defendido uma reforma para que haja uma diminuição da desigualdade na Ligue 1. Bertrand Desplat, presidente do EA Guingamp e uma das lideranças das reivindicações dos insatisfeitos, cita a divisão da Premier League como um exemplo a ser seguido. Até mesmo o presidente da Federação Francesa de Futebol já se mostrou sensível à causa. Os italianos também têm olhado para a Premier League como um exemplo a ser copiado. E isso nos leva ao questionamento do modelo da Globo.

Até 2011, os clubes italianos negociavam individualmente. Realidade que mudou depois de um relatório de 170 páginas elaborado pela autoridade antitruste do país em 2007, que levou o Ministério do Esporte a determinar as negociações passassem a ser coletivas. A distribuição passou a ser 40% dividido igualmente entre todos, 30% de acordo com o mérito desportivo e 30% baseado no tamanho da torcida (5% de acordo com a população da cidade onde está o clube e 25% pelo número de torcedores, levando em conta as pesquisas do gênero). Ou seja, o modelo da Globo copia o italiano nos 40% iguais entre todos, 30% no mérito desportivo e pega do inglês o critério dos jogos transmitidos – alvo de críticas por parte de alguns clubes – sendo que amplia a distorção – na Premier League é 25%, na Globo será de 30%.

Acontece que a liga italiana é, atualmente, a mais desigual do top 5 europeu. Sim, mais desigual que a liga espanhola (após o Real Decreto-ley 5/2015). Se na Inglaterra a diferença entre o topo e o fundo é de uma ratio de 1,51:1, na Itália é de 4,7:1. A Juventus faturou um valor estimado em €103,1 milhões, ao passo que Carpi e Frosinone ficaram com estimados €22 milhões em 2015/16.

Comparando os valores distribuídos em 2014/15 com uma distribuição aos moldes da Premier League, a diferença fica latente. A Juventus seguiria no topo da lista, mas teria recebido o correspondente a 6,26% do total ao invés dos 11,24% que faturou; enquanto o Empoli deixaria de ser o último da tabela, passando de 2,14% para 4,38%; o Parma ficaria no fundo, com 4% (ainda assim, uma diferença de apenas 2,26% para o primeiro, enquanto no modelo vigente a Juve recebeu 9,1% a mais que o último).

Não é por acaso que já se discute a possibilidade de um projeto de lei que vise a aumentar a parcela dividida igualitariamente entre todos os clubes da Serie A (pelo menos 50% do total), a fim de diminuir a distância entre o topo e o fundo da tabela. Percebem, então, o porque a proposta da Globo, embora aliciante no primeiro olhar, na realidade não é nada inovadora? A Globo propõe aos clubes brasileiros um modelo que está longe de atingir o ideal da equidade. Os clubes brasileiros perdem, assim, a oportunidade de ter uma distribuição semelhante à Premier League (como proposto pelo Esporte Interativo), a mais equânime da Europa, amarrando-se até 2024 a um formato que é criticado na Itália.

Tempo de contrato e concorrência

Como já mencionado, a Comissão Europeia já se manifestou favorável às negociações coletivas, por considerar que preserva a igualdade e a competitividade. Além disso, a CE também sugere que os contratos tenham um período máximo de três anos, de forma a garantir a livre concorrência do mercado. A concorrência, por sinal, que foi um dos fatores para que o primeiro contrato coletivo da liga espanhola aumentasse o faturamento em cerca de €335 milhões, se comparado à última temporada com negociações individuais. Em Portugal, onde as negociações são individuais, recentemente Benfica, Porto e Sporting anunciaram acordos com durações de 10 anos – fazendo com que a Autoridade da Concorrência (AdC) portuguesa afirmasse que vinha mantendo há meses o mercado dos direitos de transmissão televisiva de conteúdos desportivos sob análise. Os novos contratos do futebol brasileiro correspondem ao período de 2019-2024: seis temporadas. Ou seja, completamente fora dos padrões recomendados pela Comissão Europeia para a livre concorrência.

Conclusão

O novo modelo de distribuição da Globo é um avanço. Quando se tem nada, qualquer coisa a mais já é um avanço. Entretanto, o formato proposto pela emissora ao invés de partir de uma divisão mais igualitária – como da Premier League e os 50% iguais entre todos -, apresenta semelhanças ao da Itália, a liga mais desigual entre as cinco maiores da Europa, e ainda traz um critério que pode gerar distorções, que é o dos jogos transmitidos (contestado na Inglaterra, inclusive). Na Itália, por sinal, já se discute um projeto de lei para a adoção do modelo inglês. Além do mais, o tempo de contrato é muito longo. A Comissão Europeia, em defesa da concorrência, recomenda três anos de contrato às ligas do Velho Continente. O acordo da Globo com os clubes é de 2019-2024. São seis anos presos a um modelo que já nasce obsoleto. Os clubes perdem, assim, a oportunidade de se aproximarem da equidade, como proposto pelo projeto de lei 755/2015, em tramitação no Congresso Nacional. Um avanço. Mas um avanço estagnante, que impossibilita que se avance efetivamente rumo à “justiça como equidade".