Antonio Candido, decano da crítica

Em seu blog, o escritor e jornalista Juremir Machado, republicou um de seus últimos contatos com Antonio Candido, que ele considera “o papa da crítica literária brasileira”.

Antonio Candido - Divulgação

Antônio Candido morreu nesta sexta-feira (12), considerado por muitos um dos maiores intelectuais brasileiros de seu tempo. Para Juremir “um mestre, um monstro, um humanista”.

Leia a seguir a publicação na íntegra:

Quase centenário Antonio Candido

Há muitos anos, uns 25, entrevistei Antonio Candido em Porto Alegre.

Ele era septuagenário.

E já era considerado o decano dos críticos literários brasileiros, admirado por suas análises da “dialética da malandragem” em Memórias de um sargento de milícias, romance singular de Manuel Antônio de Almeida. Tem um time renomado de críticos da velha guarda encabeçado por uma tríade extraordinária: Antônio Cândido, Alfredo Bosi e Roberto Schwartz. Hoje, Candido tem 97 anos de idade.

Neste verão, tivemos, ele e eu, algumas conversas por telefone. Linha aberta entre Porto Alegre e São Paulo. Chegamos a combinar uma ida a minha a São Paulo para uma conversa presencial. Cancelamos para evitar uma sobrecarga ao quase centenário professor.

Nossas ligações foram marcadas por meu espanto: a força da voz e a lucidez intelectual do ex-professor da Universidade de São Paulo, mestre de várias gerações. Embora dizendo-se com sérios problemas de memória, Antonio Candido parecia a cada conversa não esquecer um detalhe da anterior. Em todas as ocasiões, ressaltava: “Faz tempo que encerrei minha atividade intelectual, mas tenho de zelar pela minha obra. Tenho uma responsabilidade. Certa vez, dei uma entrevista e, pouco depois, tive uma iluminação: as respostas estavam invertidas por causa de uma traição da minha memória”.

O velho professor me contou que vida de quase centenário tem um ritmo muito próprio, livre de certas expectativas e voltado para outras. Disse já não ler novos autores nem ter forças para acompanhar a renovação da literatura.

Releituras, porém, são inevitáveis. Quanto mais o tempo passa, mas as velhas paixões se afirmam. Quase aos cem anos, Candido atende o telefone com voz clara e articulada, mesmo quando, por um acidente doméstico, havia quebrado dentes. Dá informações como endereço, com direito a CEP, sem hesitar. Um dia, quando lhe telefonei, ele reagiu com a agilidade de um menino e a cortesia de um velho fidalgo, pressupondo-se que os fidalgos eram gentis como o veterano mestre continua sendo. Disse-me: “Eu ia ligar para o senhor agora mesmo. Precisamos revisar aquele nosso acordo”.

Eu ri. Ele também. Revisamos o nosso acordo.

Ele temia, imaginem só, não estar, nas suas respostas, à altura das perguntas que me pedira por escrito.

Coloquei na tela do computador um velho texto meu e li: “Memórias de um Sargento de Milícias foi rotulado inicialmente como romance de costumes, precursor do realismo, que retrataria a vida à época de D. João VI no Rio de Janeiro. Em 1941, Mário de Andrade redimensionou a leitura do velho texto ao sugerir que se tratava de um continuador da tradição picaresca espanhola, o último rebento da família Lazarillo de Tormes. Em 1956, Darcy Damasceno refutou os argumentos de Mário e retornou à designação ‘romance de costumes’. Antonio Candido partiu dos três estudos para revolucionar não só a interpretação da obra de Manuel Antônio de Almeida, mas a maneira de ver o cotidiano brasileiro ao falar em dialética da malandragem”.
 
Expectativa de vida
 
Fiquei meditando. Nessas poucas conversas, perscrutei a sabedoria do professor. Senti a fortaleza dos conhecimentos sólidos na sua cautela. O velho mestre tossiu levemente. De longe, parecia um colegial tímido. Não queria ser louvado tão escancaradamente na própria presença, caso se possa falar em presença numa conversa telefônica. Por fim, observou muito de passagem: “Não foi uma má ideia”. Leonardo, protagonista de Memórias de um sargento de milícias, na leitura famosa de Candido, tinha personalidade própria “… manifestando um amor pelo jogo-em-si que o afasta do pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sempre ao proveito ou a um problema concreto, lesando frequentemente terceiros na sua solução”.

Eu queria saber tanta coisa do grande mestre: por que dedicara a vida à literatura, por escolha consciente ou por bifurcações de caminhos surgidos na caminhada? O que a literatura lhe dera de melhor? Faria o mesmo percurso se possível fosse? Que autor mais marcara a sua vida? Qual a obra? Queria saber se continuava lendo Manuel Antônio de Almeida e seu sargento de milícias? Queria saber se o professor, com seu viés de esquerda, próximo do PT, aplicaria o conceito de  dialética da malandragem ao Brasil de hoje? Tanta coisa: o Brasil merecia ter um prêmio Nobel de Literatura? Quem? Como vê a luta em torno do impeachment da presidente Dilma? Ter quase cem anos e tanta lucidez torna nostálgico? A cultura brasileira em outros tempos era melhor? Como é ser o decano da crítica brasileira?

Antonio Candido me ouvia.

Não parecia ter pressa. Generosamente, explicou: “O senhor verá quando estiver quase chegando ao cem anos que a gente passa a ter outras preocupações e interesses também”. Não me contive. Perguntei: “Quais, professor, quais?” Ele me concedeu um reposta perfeita, enxuta, sábia, risonha: “A vida”.

*
Tento aprender essa lição.
Ainda sou aluno inexperiente.