Victor Marques: Pequena elegia a um cidadão comum

“Dizem os mais próximos que na casa de Belchior a preocupação com a situação política do Brasil – ‘com o golpe’ – era uma constante. Sentia, por isso, que estava na hora de voltar. Sua companhia certamente seria bem-vinda na travessia de mais esse deserto, onde o velho não acaba de morrer e o novo não acaba de nascer. Que as lágrimas dos jovens que agora o choram sejam fortes o bastante para fazer renascer um outro futuro possível. Quem viver verá”.

Por *Victor Marques

Belchior - Divulgação

Há um mês, no dia 30 de abril, abandonava esse mundo Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes – nosso Belchior. Que a terra lhe seja leve.

Belchior se foi no auge. Apesar dos muitos anos longe dos holofotes, uma nova geração arranjou um jeito de encontrá-lo. Suas músicas acabaram virando “hinos não oficiais” dos estudantes das escolas ocupadas, que orgulhosamente cantavam: sempre desobedecer, nunca reverenciar! No Carnaval de 2017, saía o primeiro bloco de Carnaval em São Paulo em homenagem ao trovador andarilho, o nome – “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” – soa agora quase irônico.

É justo dizer que “Alucinação”, completando 40 anos, foi o álbum de 2016. Não por acaso, tocou a juventude, que sentiu ali algo do espírito do tempo. Pois trata-se de um álbum da derrota. Da derrota de 1968, dos sonhos dos jovens, para quem o sinal havia sido fechado, brusca e violentamente. É um álbum profundamente político, e, por isso mesmo, profundamente melancólico.

A melancolia de Belchior, no entanto, é sempre esperançosa. Na mesma música em que diz: “Por isso cuidado, meu bem/ Há perigo na esquina/ Eles venceram e o sinal/ Está fechado pra nós/ Que somos jovens”, também afirma: “Mas é você/ Que ama o passado/ E que não vê/ Que o novo sempre vem”. Atravessando o deserto, Belchior profetizava: “você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer/ que uma nova mudança em breve vai acontecer”. E em breve aconteceu: dois anos depois, as greves do ABC apontavam o caminho para a recomposição da classe e ajudaram a produzir a eferverscência social dos anos 1980 que impôs a redemocratização.

Cabe a nós, que somos jovens, aprender com essa melancolia esperançosa: encarar a magnitude da derrota, sem ilusões, mas sem desespero, sem desânimo.

Dizem os mais próximos que na casa de Belchior a preocupação com a situação política do Brasil – “com o golpe” – era uma constante. Sentia, por isso, que estava na hora de voltar. Sua companhia certamente seria bem-vinda na travessia de mais esse deserto, onde o velho não acaba de morrer e o novo não acaba de nascer. Que as lágrimas dos jovens que agora o choram sejam fortes o bastante para fazer renascer um outro futuro possível. Quem viver verá.

*Victor Marques é professor da Universidade Federal do ABC (São Paulo).

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