Valdemar Menezes: Agonia da ilegitimidade

“No Brasil de hoje, no entanto, a democracia perdeu qualquer conteúdo real de expressão da vontade da maioria dos eleitores. Virou pura formalidade. Se um segmento da sociedade, embora minoritário, tiver poder de influência sobre quem controla os mecanismos institucionais, ele pode impor sua vontade sobre o conjunto da sociedade”.

Por * Valdemar Menezes

bandeira do brasil eleição

Os brasileiros se dão conta, cada vez mais, do absurdo em que vivem: o País afunda na recessão e desemprego em consequência da imobilidade de um governo acusado de corrupção e de ser fruto de um golpe parlamentar e judicial que pôs no poder, justamente, as forças que perderam as eleições e cujo titular é rejeitado por mais de 90% da população. A rejeição atinge o programa de governo, sobretudo o modelo de reformas anunciado. Isso já seria por demais problemático se fosse um governo eleito pela maioria dos eleitores e que aos poucos tivesse perdido a aprovação dos que o elegeram. O que dizer, então, de um presidente cujo cargo é resultante de uma manobra capciosa, articulada por seu grupo político para barrar a investigação destinada a pô-los na cadeia por corrupção? Tudo isso – frise-se – validado por um Congresso cuja grande parte dos componentes é acusada de ter tido seus mandatos financiados pela corrupção.

Vice-presidência

Ainda que o impeachment não tivesse sido fajuto (e foi, já que ficou provado não ter havido crime de responsabilidade), o vice-presidente que assumiu o lugar de Dilma Rousseff não poderia ter mexido na essência do programa de governo aprovado pelas urnas, na eleição presidencial. Ele teria de ter dado prosseguimento ao modelo econômico então vigente, cuja continuidade os eleitores aprovaram quando reelegeram Dilma Rousseff. A menos que tivesse feito, em seguida, uma consulta direta aos eleitores e estes tivessem aceitado a mudança. O programa é da chapa eleita. No regime constitucional vigente no período 1946-1964, aí sim, o vice-presidente que substituísse um presidente resignatário ou “impichado” tinha legitimidade para mudar o programa de governo do titular afastado e implementar um programa próprio. Por que? Porque nessa época o vice era eleito separadamente e, se tivesse mais votos do que o vice da chapa adversária vitoriosa, assumiria seu lugar ao lado do presidente adversário eleito.

Programa da Chapa

João Goulart, por exemplo, era vice do candidato presidencial marechal Henrique Teixeira Lott (PTB/PSD). Este foi derrotado por Jânio Quadros (PTN-PDC-UDN-PR-PL), cujo vice, Milton Campos, teve menos voto do que Goulart. Quando Jânio renunciou, Goulart assumiu a presidência e implantou o programa que defendera em sua própria campanha. No regime da Constituição de 1988, no entanto, o programa de governo pertence à chapa eleita. O vice não recebe votos individuais, daí não ter legitimidade para mudar o que foi aprovado pelos eleitores, se vier a substituir o titular. No Brasil de hoje, no entanto, a democracia perdeu qualquer conteúdo real de expressão da vontade da maioria dos eleitores. Virou pura formalidade. Se um segmento da sociedade, embora minoritário, tiver poder de influência sobre quem controla os mecanismos institucionais, ele pode impor sua vontade sobre o conjunto da sociedade. É o caso do poder econômico. A maioria da sociedade, no presente momento, por exemplo, rejeita o governo e o modelo de reformas defendido por este e pelos empresários. Mas de nada adianta a rejeição, pois o poder econômico tem meios para impor sua vontade (e seus interesses) sobre a sociedade inteira, esvaziando o sentido de democracia.

Desfiguração

No atual momento, a desfiguração da democracia é tamanha que 80% da representação (deputados e senadores) são empresários. Para ser correta essa correlação precisaria que houvesse na sociedade mais empresários do que trabalhadores. E a realidade não é essa. Por aí se vê que a democracia representativa brasileira é um simulacro, uma fantasia. E o mais absurdo é se ver os direitos dos trabalhadores sendo definidos pelos empresários-parlamentares, isto é, os patrões, no Congresso. Não existe o menor senso de razoabilidade e congruência nessa correlação. O Brasil assiste a essa farsa e fica cada vez mais perplexo e horrorizado com o despudor dos que mantêm esse espetáculo. A cegueira dos que sustentam esse edifício de insensatez só é comparável à da nobreza francesa às vésperas da Revolução de 1789. Os antolhos são os mesmos: queira Deus que não seja o mesmo o desfecho, pois algo pode escapar do controle, em algum momento. Só a soberba não o percebe…

Zerar o jogo

Não é preciso fazer muita ginástica mental para concluir que a saída menos traumática é a devolução ao povo do direito (garantido pela Constituição de 1988) de restaurar a legitimidade do poder através das urnas, isto é, da soberania popular (Art.1º, § único da CF). Não é o paraíso, mas as eleições gerais e diretas têm o condão de livrar o Brasil das portas do inferno, pois é o caminho mais legítimo, universal e pacificador, já que dá a todos os grupos a oportunidade de apresentar suas propostas, deixando ao povo a decisão final. A intransigência do andar de cima poderá levar à explosão do caldeirão social. E aí seria um deus-nos-acuda. Bom senso, humildade e discernimento nunca foram tão estratégicos como agora.

*Valdemar Menezes é jornalista e colunista do O Povo.

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