A perigosa autocrítica da esquerda brasileira

Está em voga um novo período de autocrítica da esquerda. Parece que absolutamente todos os líderes e partidos têm interpretações sobre a última década e os governos de Lula e Dilma. Essas interpretações nortearam inclusive as agendas dos mais diversos matizes da esquerda brasileira no último período, desde os setores de esquerda até a extrema esquerda.

Por Gabriel Nascimento*

Autocrítica - ilustração - Ilustração

Desde cartas e notas que tratavam os governos Lula e Dilma como populares e reafirmavam suas políticas e programas até textos que acusavam esse governo de fascista e de direita. Só uma vasta pesquisa profunda revelaria a disparidade e a polifonia desses textos. O que me preocupa é a autocrítica nesta quadra política em que vivemos.

Quase sempre, e com o texto de Haddad (“Vivi na pele o que aprendi nos livros”), a autocrítica deixa de ser uma etapa da solução e passa a ser um problema. Isso porque historicamente a esquerda confunde autocrítica com revisionismo barato.

Por mais incrível que pareça, a esquerda brasileira é muito mais eurocêntrica do que se imagina. E, por mais incrível que pareça, o nível de radicalização do discurso eurocêntrico sobre o revisionismo historicista atingiu a nossa esquerda em cheio desde a derrocada do projeto socialista na URSS, eclodindo no final da década de 80. O revisionismo é ainda mais eurocêntrico se levarmos em conta o discurso trotskista divisionista que povoou o pensamento ocidental pós-segunda guerra.

Historicamente essa esquerda faz autocrítica como ruptura com seu próprio acúmulo na história. Trata-se aqui da estratégia diametralmente oposta à da direita. Essa autocrítica é recheada de um pessimismo e paralisação das próprias lutas da esquerda, em prol de um suposto espírito universal (ele mesmo uma metanarrativa) de superação, caracterizado por um ascetismo de base cristã e um secularismo que fortalece a metafísica.

Em outros termos, não existe só autocrítica. Trata-se de um espírito universal de fazer uma História perfeita, a única versão verdadeira da História, um racha da História com suas experiências reais e concretas. Esse racha é o perigo da autocrítica naqueles tempos e em nosso tempo. Especialmente no Brasil pós-golpe de 2016.

É lógico que um golpe, como o que ocorreu com Dilma e com a democracia brasileira em 2016 aguça a necessidade de autocrítica. Mas essa autocrítica não é apressada e rápida, como alguns atores querem. Ela precisa ser necessária e programática. É isso mesmo, a própria autocrítica precisa, ela mesma, e para ela mesma, ter programa. Não adianta usar somente os próprios fatos para interpretações absolutamente individuais sobre os mesmos. Uma autocrítica que se queira histórica, sem programa e sem metodologia de análise, cai no erro de ser reducionista e sem política. Uso essas duas palavras para substituir tantas outras como ascética, moralista, a-histórica. Esse perigo a esquerda não pode mais correr.

O perigo da autocrítica vai desde ignorar a diversidade do povo brasileiro e seus diversos matizes ideológicos até pensar o trabalhador brasileiro como oco, como se ele mesmo não estivesse pensando o que está acontecendo no Brasil. Vejo e tenho ouvido o que há de mais absurdo nessa matéria. Parece sempre que a esquerda, que quer ser representante dileta do povo, não senta meia hora na frente de uma secretaria de desenvolvimento social de município do interior do Brasil para conversar com as pessoas que vão ali se recadastrar no Bolsa Família. Isso é fundamental para essa autocrítica e é um item necessário para o programa da autocrítica.

O perigo do abismo entre o representacionismo (ou basismo) e a falsa representação também é uma constante. Um extremo que ignora as organizações tradicionais (movimento sindical e movimentos sociais em geral) acha estar mais próximo do povo com pautas puramente identitárias (aliás, uma interpretação perigosa de um artaefato da cultura, da política, da economia e da sociedade como identidade) que, em sua maioria, ainda não são dialogadas dentro da política real. Aqui não é um apelo pelo abandono dessas pautas tão caras (como é a própria questão racial, gênero e LGBT) que são o próprio repertório da luta classista e etnicorracial, mas o clamor pela afinação dessas pautas na política. Por outro lado, os sindicatos e movimentos sociais tradicionais precisam mesmo entender a diversidade do nosso povo na época que vivemos e em sua construção histórica e que, portanto, não representam (e nem precisam nos postos dados) essa diversidade do povo brasileiro. O subproletário, a diversidade de trabalhadores ainda não representados por centrais sindicais e sindicatos, a imensa quantidade de estudantes que sequer sabem de uma organização estudantil devem chamar a atenção de todos nós sempre. Eu apostaria que o primeiro passo seria ouvir essas pessoas, ainda mais do que falar para elas.

A cada texto de alguém de esquerda parece ser mais surreal a autocrítica. Em “Vivi na pele o que aprendi nos livros”, ensaio de Haddad publicado na Revista Piauí, o texto que poderia ser uma autocrítica figurou mais como um balanço surreal e histérico de quem acreditou poder vencer sozinho uma estrutura tão bem planejada como o nosso patrimonialismo. Mas esse texto dele não chega nem perto do efeito do texto em si. O efeito do texto em si é o retrato da autocrítica de uma esquerda que está em cacos e continua achando que está reinando livre e soberana.

Por isso, a principal figura para qualquer autocrítica que seja, eu diria, é unidade, ainda que tática, dos setores da esquerda. Se a autocrítica figura como um objeto pessoal de cada coletivo e grupo, de cada tendência e corrente, de cada partido e frente, ela figura como a leitura sempre personificada e ingênua da política, ignorando o que a esquerda mais parece prezar, a dialética. Aliás, a dialética, e isso deixo para outro momento, parece ser o mais perigoso nicho discursivo de uma esquerda em cacos, porque, e adianto um pouco de minha tese, a maioria das correntes de esquerda entende dialética sem pensar sujeito e história.

Sem unidade na metodologia e no programa, a autocrítica figura, mais uma vez, como objeto da interpretação mais perfeita do que se pode ter da História. E, para finalizar, sem unidade, a esquerda esbarra nela própria, que ainda não entende sobre os embargos que se tem quando não se é capaz de dialogar nem com os demais setores da esquerda, impingindo a imagem de traidor a todo e qualquer ser humano que converse e aperte a mão de alguém do centro ou da direita, como se isso fosse um crime em política. Sem esses passos, a autocrítica é uma fábula.

*Gabriel Nascimento é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, mestre em Linguística Aplicada e doutorando em Letras pela USP. É ainda secretário geral da Associação Nacional de Pós-graduandos, membro da direção nacional da UJS e autor dos livros “O Maníaco das onze e meia” (2016) e “Este fingimento e outros poemas” (2017).