Guilherme Mello: Os “riscos” da democracia

A população tende a novamente escolher projetos políticos e econômicos que entreguem crescimento e distribuição de renda, ao invés de desemprego e aumento da pobreza. É isso que assusta tanto os analistas econômicos de plantão, que insistem em profetizar o desastre caso as políticas que defendem sejam revertidas.

Por Guilherme Santos Mello*

Marcos Oliveira/Agência Senado

O Brasil saiu da recessão e está trilhando o caminho de volta ao crescimento. A inflação foi debelada graças à atuação competente da autoridade monetária. A situação fiscal estará sob controle caso se aprovem as reformas hoje presentes no Congresso. Com inflação baixa, finanças equilibradas e legislação trabalhista mais flexível, o empresário retomará sua confiança e voltará a investir, gerando uma nova e mais equilibrada rodada de crescimento. O único risco à deflagração deste processo positivo e harmonioso advém da política, tanto pela possibilidade de retardar a tramitação das reformas (no caso da manutenção do atual governo), quanto por eventualmente impedir sua aprovação e promover uma alteração na estratégia de política econômica atual (no caso da eleição de um novo governo). Ou seja, a própria democracia colocaria em risco o sucesso de uma estratégia econômica correta e bem sucedida.

Todas essas afirmações, e muitas outras derivações do mesmo tema, são exaustivamente repetidas nos jornais impressos, radiofônicos e televisivos. Seja pronunciada por autoridades oficiais do governo, seja exposta por analistas econômicos e do mercado financeiro, a moral da história é sempre a mesma: Estamos no rumo certo na economia, mas a política pode atrapalhar!

As evidências dos avanços no campo econômico seriam pequenas, mas inequívocas. Em primeiro lugar, a redução da inflação provaria a correção da política monetária, que teria “quebrado a espinha dorsal” da inflação no Brasil, nas palavras do presidente do Banco Central. No entanto, uma análise minimamente cuidadosa dos dados não nos permite tamanho otimismo, por que boa parte da redução da inflação observada nos últimos doze meses deriva de fatores que pouco tem a ver com a atuação das autoridades monetárias: o fim do impacto do ciclo de aumento dos preços administrados, o fim das pressões inflacionárias advindas da depreciação cambial, a supersafra agrícola (que jogou para baixo o preço dos alimentos) e, certamente o fator mais importante, a pressão deflacionista decorrente da maior recessão da história brasileira, que rebaixa salários e preços livres. Nenhum desses fatores está diretamente ligado as decisões de política monetária e podem retornar caso as circunstâncias se alterem no futuro, com a eventual retomada do crescimento, anos menos positivos do ponto de vista climático ou a necessidade de novas rodadas de depreciação cambial.

Uma segunda “evidência” do propalado sucesso da atual política econômica estaria na retomada do crescimento. O resultado do PIB do primeiro trimestre de 2017 foi comemorado como a reversão definitiva do longo período recessivo enfrentado pelo Brasil, lançando as bases para um novo período de crescimento. Aqui, novamente, os dados não são nada animadores e contradizem o discurso oficial. Em primeiro lugar, o crescimento se deu em cima de uma base profundamente depreciada, o que faz com que pequenas variações positivas em algumas váriaveis isoladas apareçam com grande impacto no resultado agregado do PIB. Em segundo lugar, o fato do crescimento ter se concentrado na agricultura (do lado da oferta) e nas exportações (como variável de demanda), mostra a fragilidade da expansão da atividade, dependente de boas safras, preços internacionais de commodities e condições agrícolas. Por fim, a queda expressiva dos investimentos e a recorrente retração do consumo das famílias apontam para uma perspectiva nada animadora para o crescimento nos próximos trimestres, uma vez que a demanda continua se retraindo apesar da rápida desaceleração da inflação.

Aqui entraria a terceira “evidência” de sucesso da estratégia das atuais autoridades econômicas: a queda da inflação provocaria ou aumento da renda real e, juntamente com as reformas, seriam responsáveis por promover a retomada do consumo, da confiança do empresariado e, como consequência, o retorno dos investimentos. O problema é que essa terceira evidência também não encontra respaldo na realidade: apesar de ter retornado para patamares positivos, o aumento da confiança do empresário não promoveu uma elevação nos investimentos; apesar da retração da inflação, não se observou nenhuma melhoria na renda, no salário real e no consumo das famílias trabalhadoras, crescentemente assoladas pelo desemprego.

Se as evidências de sucesso da política econômica fossem reais, não apenas interpretações equivocadas e fantasiosas dos dados, certamente o risco político tão enfatizado pelos especialistas não seria tão grande. Se a estratégia liberal da austeridade econômica, iniciada com Levy e Dilma em 2015 e aprofundada (inclusive no longo prazo) por Temer e Meirelles ao aprovar a PEC do teto de gastos, tivesse sido bem sucedida em promover algum crescimento sustentado, retomando a renda e emprego das famílias, certamente ela encontraria mais apoiadores dentro da sociedade, não apenas os poucos (mas muito escutados) representantes do governo e do mercado financeiro. Permeados por ideologia e interesses, estes atores sociais pregam no deserto ao defenderem a importância dos cortes de gastos, dos juros altos, das reformas antipopulares e da crescente liberalização financeira e comercial. Diferente do que querem fazer crer, não estão politicamente isolados por conhecerem um segredo que poucos conhecem, ou enxergarem fatos que apenas os “inteligentes podem ver”; se encontram isolados pela completa incapacidade de sua estratégia entregar o mínimo de bem estar social para a grande maioria da população, enquanto mantém e garante os privilégios da minoria de ricos e grandes proprietários.

O que torna os riscos políticos tão decisivos é o fato de que, após três anos de experimentação desastrosa, a austeridade e o liberalismo fracassaram em entregar o que prometeram. Sendo assim, a população tende a novamente, assim como já havia feito nos últimos quatro pleitos eleitorais, escolher projetos políticos e econômicos que entreguem crescimento e distribuição de renda, ao invés de desemprego e aumento da pobreza. É isso que assusta tanto os analistas econômicos de plantão, que insistem em profetizar o desastre caso as políticas que defendem sejam revertidas.

Por trás do discurso de “risco político”, se observa um profundo desprezo pela democracia. É evidente que as incertezas políticas afetam a decisão de investimento dos empresários, mas a incerteza existe pois temos diferentes projetos de nação em disputa, que merecem ser apreciados pelo povo brasileiro. Apenas um governo legitimo, com credibilidade proferida pelo voto popular, será capaz de implementar um projeto de desenvolvimento, seja ele qual for. Negar essa possibilidade ao povo brasileiro, sob o argumento de “risco político”, ou mesmo defender que não há outra alternativa a não ser aquela representada por sua ideologia, é uma forma de flertar com o autoritarismo, mesmo que de maneira velada. Se hoje a política é um obstáculo para a verdadeira retomada do crescimento e do desenvolvimento econômico, a solução não é limitar a democracia, mas ampliá-la, legitimando um novo governo pelo voto popular.

* Guilherme Santos Mello – Prof. do Instituto de Economia da UNICAMP (IE/UNICAMP) e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da UNICAMP (CECON-IE/UNICAMP)