Diva Guimarães, Otto, Johnny Hooker e a nova onda de contestação

O fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer, disse o ensaísta e sociólogo francês Roland Barthes. Desde a assunção do golpe de 2016, começaram a ser construídos ambientes controlados na sociedade brasileira para legitimar a narrativa da legalidade do regime e cristalizar a ideia de que reivindicações sociais, culturais e políticas, no clima forjado de “reconstrução nacional”, são inoportunas.

Diva Guimarães - Divulgação

 Dizer qualquer coisa fora dos roteiros estabelecidos passou a culminar com um tipo de criminalização do “dissidente”.

Essas barreiras começaram a ruir com diversas manifestações espontâneas de desobediência civil. Seu desabamento foi inaugurado com ações como a de Thiago Rocha, estudante de História da UFRJ, que, ao ser instado a dar entrevista ao vivo à TV Globo, em maio de 2016, iniciou com um “Primeiramente, Fora Temer!”

Na semana passada, uma senhora negra de 77 anos, Diva Guimarães, do Paraná, rompeu mais uma comporta desse bloqueio: ela pediu a palavra em um debate na Festa Literária de Paraty (Flip) e deu uma traulitada mortal no racismo velado brasileiro.

Diva falou durante 13 minutos na mesa A Pele Que Habito, depois do ator Lázaro Ramos e da jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques. Quando concluiu, dezenas estavam às lágrimas. Sua fala foi gravada na íntegra pela organização da Flip e viralizou na internet.

O discurso de Diva Guimarães alastrou-se como fogo no mato seco por conta da verdade límpida do relato, que escancarou a segregação dentro da Igreja Católica. Vinda de família pobre, sem condições de subsistência, foi levada aos 7 anos para ser criada em uma instituição de freiras.

Ali, ela descobriu que as crianças negras só trabalhavam e a discriminação era regra. “Existia um rio – aquele maldito rio abençoado por Jesus –, diziam as freiras, em que os brancos se banhavam primeiro e os negros, por serem preguiçosos, entravam por último e só colocavam as palmas das mãos e dos pés.

Era isso o que as freiras contavam para a gente, para explicar a diferença da cor da pele entre brancos e negros”, disse a professora dona Diva.

A contundência de Diva alcançou ainda maior impacto por conta da simplicidade de suas descrições do racismo que sofreu e vem sofrendo desde que se conhece por gente. “Você entra em uma loja e escuta ‘posso lhe servir?’, mas isso não é para servir você, é para ficar andando atrás de você para ver se vai roubar”, afirmou, em entrevista ao jornal O Globo.

As ações espontâneas de desobediência civil desafiam o racismo, o golpismo e também o espírito de corpo. Na semana passada, o secretário municipal de Cultura de São Paulo, André Sturm, foi retumbantemente vaiado no Memorial da América Latina por uma plateia de cineastas.

O também cineasta Sturm certamente contava com um ambiente sob controle quando subiu ao palco para discursar, mas a vaia ultrapassou os 15 minutos. Entre os créditos para tal rejeição, André Sturm contabiliza ações nocivas na secretaria, especialmente no âmbito democrático.

No fim de julho, ele desferiu um violento ataque às instâncias democráticas de organização cultural: com um decreto assinado pelo prefeito João Doria, publicado no dia 21 no Diário Oficial da Cidade de São Paulo, Sturm feriu de morte o Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca (PMLLLB).

O decreto de Doria estabeleceu que a composição do conselho do PMLLLB será agora escolhida por ele, Sturm, e não mais por instâncias de representação das diferentes cadeias produtivas do livro.

O ato de Doria, evidentemente causado por um pedido do secretário, tem pinta de retaliação: em 11 de maio, ao participar da primeira reunião do conselho do PMLLLB, Sturm bateu boca com os conselheiros e destratou um deles: “Eu leio mais livro que você. Tenho certeza”, afirmou, antes de sair da reunião.

Pouco tempo antes, tinha ameaçado “quebrar a cara” de um agente cultural da Zona Leste que o interpelou, devido à subvenção atrasada de um centro cultural.

Sturm, que já teve a sede da secretaria ocupada por coletivos da periferia, colhe os louros do que plantou (na reportagem “O secretário que derreteu”, de junho, CartaCapital já chamava atenção para os pendores autoritários do secretário).

Nos últimos dias, essa tendência de Sturm se acentuou. Primeiro, mudou a seu próprio critério a catalogação de livros nas bibliotecas municipais. Agrupou todos os autores por sobrenome. No caso da Biblioteca Álvaro Guerra, a única divisão que sobrou na não ficção é “policial”, e a prefeitura colocou Detetives Selvagens, do chileno Roberto Bolaño, nessa categoria.

A compositora Liana Yuri, frequentadora da Biblioteca Viriato Correa, na Vila Mariana, em São Paulo, ficou chocada ao saber dos funcionários que Sturm ordenara que retirassem centenas de livros do acervo por serem “velhos”.

“A bibliotecária me falou baixinho que salvou um deles da queima: As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano”, afirmou Liana em sua página no Facebook.

Em territórios de unanimidade ideológica, como a Rádio Jovem Pan, uníssono da extrema direita, é muito raro que alguma coisa saia do roteiro. Mas, no último dia 21, ao participar do programa Morning Show, apresentado por Edgar Piccoli, o cantor e compositor pernambucano Otto furou o bloqueio.

Contrapôs-se com energia à opinião do comentarista Augusto Nunes, defendendo o governo Dilma e dizendo que o País deve desculpas à presidenta afastada.

“Dilma não foi vítima. Ela é uma mulher forte. Quem deveria estar preso está solto. A democracia foi quem perdeu. É um buraco tão grande que se criou neste país que estamos pagando agora. Bala que dispara contra o tempo sempre volta”, afirmou o cantor.

Rebatido pelos comentaristas da emissora, ele seguiu firme. “Eu não tenho partido, tenho posições minhas. A única coisa que vai ajudar é uma eleição direta”, afirmou. “Eu sou de esquerda. Meu partido é a esquerda, e o seu? É a direita”, disse, em resposta a uma pergunta do jornalista Augusto Nunes.

“O sistema deste país deve desculpas não apenas à presidenta, mas para todos. Todo mundo sabe que ela estava no meio de macacos. Dilma era uma pessoa honesta, não precisava sair daquele jeito”, afirmou Otto.

O rapper, romancista e poeta Ferréz, autor do premiado Capão Pecado e outros livros, diagnosticou que a maior violência desta época é que se tenta fazer com que a periferia negue aquilo em que acreditou, uma vida de igualdade de oportunidades, de eliminação das diferenças sociais, de distribuição de renda.

Tentam fazer as pessoas se envergonharem daqueles que foram os maiores acertos de um período: a distribuição de renda, os avanços educacionais, culturais e legislativos.

A onda de contestação estende-se também ao campo comportamental. O músico pernambucano Johnny Hooker causou polêmica ao criticar Ney Matogrosso e o que ele acredita ser uma negligência do astro em relação aos temas caros ao universo LGBT.

Ney, em entrevista à Folha de S.Paulo, dissera o seguinte: “Que gay o caralho, eu sou é um ser humano”.

Johnny recebeu uma saraivada de críticas, como é regra em qualquer artista jovem que critica uma vaca sagrada da MPB. Muita gente não o perdoou por afrontar Ney, um artista que encarou o mundo macho e machista da música brasileira vestido de plumas e rebolando em plena ditadura militar, à frente dos Secos & Molhados, e que, portanto, merecia mais respeito.

Mas o posicionamento de Johnny Hooker parece ir um pouco além do puro confronto geracional. “Em 2017, é legal ser gay no Brasil? Não é legal ser gay no Brasil. O Brasil mata um LGBT a cada 25 horas”, afirmou o pernambucano. 

“Entendi o que Ney falou, precisamos humanizar. Mas não acho que a sociedade brasileira veja os LGBTs como seres humanos.”

Em entrevista ao Correio da Bahia, Johnny Hooker foi ainda mais fundo. “É muito fácil ver um conservador falando isso. É só isso, essa é a discussão? É o mito do brasileiro cordial”, afirmou. “E também tem a coisa da figura de autoridade, né? A gente é colonizado até nisso. Como é que no Brasil as pessoas ficam inquestionáveis acima de qualquer colocação?”