Publicado 02/10/2017 11:15
“Justiça que tarda, falha”, afirmou a hoje presidenta do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, em 2006, ao ser indicada para uma vaga na Corte. Poucos casos ilustram tão bem essa “falha” recorrente no Brasil do que o Massacre do Carandiru, que completa nesta segunda-feira 25 anos sem que ninguém – além das vítimas, suas famílias e os sobreviventes — tenha sido punido. No episódio, ocorrido em 1992, 111 presos do pavilhão nove da Casa de Detenção foram assassinados por policiais militares e civis. Deste total, 89 eram presos provisórios, não haviam sequer sido condenados. Um quarto de século depois, a Justiça dá sinais de que o desfecho para o maior massacre da história do sistema penitenciário brasileiro pode se arrastar por mais 25 ou 30 anos.
Entre 2013 e 2014 o Tribunal do Júri de São Paulo condenou 73 PMs e policiais civis pelas mortes. Embora tenham sido sentenciados a penas que variavam de 48 a 624 anos de prisão (e somam mais de 21.000 anos de tranca), os policiais nunca foram presos e aguardam o desfecho do caso em liberdade. Até que em setembro de 2016 três desembargadores do Tribunal de Justiça anularam os julgamentos. Ivan Sartori, o relator do caso, afirmou que "não houve massacre. Houve obediência hierárquica. Houve legítima defesa. Houve estrito cumprimento do deve legal”. Sua tese é que não houve individualização das condutas da PM, ou seja, o Ministério Público não teria conseguido provar quem fez o que no momento da ação. A decisão dos magistrados foi criticada por associações de juízes, promotores e por Cécile Pouilly, porta-voz do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos.
Após os desembargadores anularem o julgamento, recursos do Ministério Público e dos advogados dos policiais foram parar no Superior Tribunal de Justiça. Os promotores pedem que a Corte confirme a condenação obtida em primeira instância. Já a defesa dos PMs pede a absolvição de todos os policiais envolvidos no caso. E o STJ ainda pode optar por mandar o caso para ser julgado novamente, o que poderia demorar mais de uma década, dada a complexidade do processo. Até o momento, 35 jurados atuaram nos casos, sete para cada um dos cinco julgamentos – um para cada andar do pavilhão.
“Por um lado a sensação é de impunidade, de um sistema de Justiça que não funciona, não vai bem e é anacrônico”, afirma o promotor do Ministério Público Estadual de São Paulo Márcio Friggi, que atuou no caso. “Não se concebe que um caso, por mais complexo que seja, demore 25 anos sem um desfecho”, diz. Apesar do cenário sombrio e do revés sofrido no processo, Friggi diz ter “esperança” de que o STJ mantenha o veredito dos jurados. “Crimes contra a vida são julgados pela sociedade, pelo júri. Não pode em uma canetada reverter tudo”, afirma.
A esperança do promotor de que o STJ confirme a condenação dos policiais não é compartilhada por Sidney Sales, um dos sobreviventes do massacre. “O caso está encerrado, não tenho esperança nenhuma na Justiça. Agradeço a força e a persistência que os promotores que atuam nesse caso têm e tiveram ao longo dos anos, a determinação deles, mas acho que não tem solução não”, afirma. Hoje pastor evangélico, Sales tinha 24 anos à época do crime. Para ele, “grande parte do Judiciário acredita naquela frase ‘bandido bom é bandido morto”.
O julgamento do caso também foi um ponto fora da curva do ponto de vista da percepção que a sociedade teve da violência policial. “É comum os jurados serem tolerantes com excessos da policia quando ela mata um suposto bandido. Mesmo diante de um panorama como esse, diante da brutalidade e do descalabro que foi o massacre, a sociedade optou por condenar essa conduta”, explica o promotor Friggi. Para o promotor, “a decisão da sociedade foi de deixar de lado preconceitos, pensamentos ideologicamente contaminados”.
Mas nem todos enxergam o episódio como uma carnificina. “A expressão massacre é muito pesada. Em um universo de 2.000 e tantos presos no pavilhão nove inteiro não posso considerar massacre uma ação que deixou 111 mortos”, afirma a advogada Ieda Ribeiro de Souza. Envolvida no caso há mais de 22 anos, ela é defensora de 49 policiais acusados pela matança. Para ela, não se pode dizer que a “impunidade prevaleceu” com a anulação do julgamento. “Desde o início o processo, por ser muito grande, não foi conduzido da forma que deveria. Se quero ter um culpado, que se culpe quem realizou os atos. Não há prova de que foram meus clientes que provocaram isso”, explica.
De acordo com ela, “os que apertaram o gatilho e atingiram alguma vítima, devem ser responsabilizados. Mas um PM disse que disparou um tiro e foi condenado por 73 mortes!”. Indagada se a impunidade no caso não dá carta branca para que policiais matem sem receio de responder a processo, Souza diz que não. “Eu acho que a condenação injusta desses homens causaria um problema muito maior do que este [carta branca para matar]. Eu teria PMs que não se sentiriam prestigiados pela sociedade, que é o que está acontecendo. A PM hoje em dia não pode agir”, diz.
Na opinião de Souza, seria preciso responsabilizar quem “deu a ordem” para a invasão do presídio. “Quem foi? As provas apontam que foi o então governador Luiz Antônio Fleury Filho, e ela foi transmitida pelo secretário da Segurança Pública da época, Pedro Franco de Campos”, afirma a advogada. Eles não responderam processo pelo massacre, apesar de terem sido ouvidos no julgamento. O ex-governador chegou a afirmar, em 2012, que “quem não reagiu está vivo”. Além de culpar os dois, Souza também aponta o dedo para “a própria estrutura do Carandiru, na qual os agentes penitenciários não conseguiram controlar a rebelião”.