Guadalupe Carniel:  Data-Pátria do Futebol

Esqueçam aquelas velhas discussões de “quem foi melhor Maradona ou Pelé?” ou ainda “mas ele é argentino’’. Aqui não tem espaço para comentários bobos que comparam jogadores distintos e em épocas diferentes (isso me lembrou um amigo que fez o comentário perfeito“ Quando menosprezam Maradona, Cruyff e Pelé dizendo que as defesas eram fracas, a impressão que passa é que a zagueirada do Osasuna é tudo Beckenbauer”).

Maradona

E se você entra nessas de rivalidades bobas inventadas por canais de TV pra atrair audiência também não faz nenhum sentido você estar aqui.

Essa semana é especial: 57 anos que Lanús e Dalma Salvadora Franco deram ao mundo Diego Armando Maradona Franco, para alguns D10S, para outros apenas um drogado (opinião de apáticos que precisam ter um olhar mais atento não só ao futebol, mas ao mundo).

Existe uma lenda que diz que quando Maradona nasceu, em um dia 30 de Outubro, os médicos com toda certeza gritaram gol. Se não gritaram, deveriam. ''Quando se atira a bola a um bebê, o reflexo natural dele é agarrá-la com as duas mãos. O meu filho chutava-a com o pé esquerdo'', segundo a mãe dele.

Polêmico e mítico. O cara que fizeram de tudo pra manchar sua imagem. Se tentaram transformá-lo em vilão, ele se tornou o anti-herói.

Jamais tentou ser santo. E talvez aí esteja parte do encanto. Desde os anos 1990 já alertava sobre o que havia por baixo do tapete na FIFA. Alguns falavam que era loucura. Anos após ele falar “que el potero y la pelota no se manchan” estão sendo escancarados escândalos da Federação.

Duas datas de fundação

Para entender o porquê Maradona é tão importante há que se ir além: precisamos entender a história e o nascimento do futebol na Argentina.

De forma bem rápida e simplificada acontece mais ou menos assim: quando se falava em Argentina no final do século XIX, muito citava-se a frase “um país latino-americano que se veste com um corte inglês”. Ou seja, a ideia era eliminar através do processo de “civilização” a figura do bárbaro como o índio ou o gaúcho rebelde. Como no resto do mundo, o futebol argentino surgiu de maneira similar: ingleses, linhas férreas. A primeira partida, ou data de fundação é 20 de junho de 1867, quando acontece uma peleja entre ingleses nos bosques de Palermo, onde fica o Planetário.

Como em toda história oficial tem um pai: o escocês Alexander Watson Hutton (apesar de muito se falar sobre o Newells). Os times que jogavam eram britânicos, com britânicos, falado em inglês. Criaram a AAFL, Argentina Associated Football League. Para entender quem poderia integrar os times associados à AFA, além dos britânicos tem uma equação simples:

filhos de britânicos nascidos na Argentina= britânicos
filhos de italianos/espanhóis nascidos na Argentina=criollos

E surgiram jornais ingleses na Argentina, escolas onde o futebol era ensinado como uma forma de estratégia. E de 1893 até 1912 somente clubes britânicos participaram. Mas claro, eles não estavam dentro de uma bolha e simultâneamente aquele esporte é jogado pelos criollos.

Até que em 1913, um equipe de origem criolla, com apenas três britânicos que havia conseguido participar do campeonato argentino se sagra campeão. Este time é o Racing Club de Avellaneda. A partir daí, outras equipes formadas por criollos passam a querer entrar para a Federação. Então os ingleses se voltam para o rugby.

O que acontece é aquele momento raro que a América Latina desfrutou: até então os latinos se moldavam aos produtos vindos da “civilização”, mas a partir do momento que o futebol surge nestas terras, ele que se molda aos latinos.

A partir de 1931 começa a profissionalização e com elas as classes obreiras passam a ver o futebol como uma forma de ascensão. E começam a surgir algumas coisas das quais detestamos até hoje: jogadores tornam-se produtos, negociações com times europeus, esquemas de suborno, etc.

Com o passar dos anos, os clubes de maior poder aquisitivo se transformam em verdadeiras “máquinas” conseguindo os melhores jogadores, mais dinheiro e por consequência mais títulos.

Depois do governo Perón, os presidentes de Boca e River (Alberto Jose Armando e Antonio Vespucio Liberti) decidem que é hora de ganhar mais: trazem jogadores estrangeiros, a maioria brasileiros e transformam o futebol em espetáculo como um produto a ser consumido pelas massas.

Com isso o futebol passa a ser visto por alguns como o ópio do povo, um dos principais motivos pela decadência ética da sociedade argentina.

A figura do Pibe e do Potrero

Enquanto neste período o futebol caminha para a globalização assim como o resto do mundo, a Argentina sempre teve um fato interessante: de construir universos locais.

E como naquele país tudo faz parte de narrativas mí(s)ticas, a História se cruza com a História Futeboleira e (re)cria personagens:o pibe e o potrero se tornam a versão moderna do gaúcho e da pampa, através da revista El Grafico, principalmente como Borocotó.

O pampa é conhecido por ser um território selvagem e fértil. O potrero, o tal do campo de várzea, é o que sobrou do pampa. Ou seja o pampa vive dentro do potrero, sendo um território livre, no caso do futebol.

Já o gaúcho é a figura rebelde, valente, visto às vezes como irresponsável por ser resistente a autoridades, mas sempre solidário. Assim como um pibe.

Quando se encontram pibe e potrero, surge um novo mundo: livre de autoridades, seja de pais, de clubes, de federações.

Pibe D’Oro

Maradona é chamado de pibe d’oro, rebaixando todos à condição de prata ou bronze. E tem características que resgatam o período dos pibes e potreros: não pensa nas consequências negativas, espontâneo, perfeito em campo, coisas que minimizam suas ações negativas fora (se comportar bem fora de campo é o que se espera de um adulto). Em suma, quando surge Maradona estamos resgatando o autêntico jogador argentino, que nunca deixará de ser menino.

Logo após o surgimento deste período do futebol ter se transformado numa máquina de fazer dinheiro aos montes, desponta uma figura com características de um futebol que ficou lá atrás, sendo o momento de resgate da pureza do futebol. Pobre, com muita destreza, irresponsável somente como um pibe seria dentro e fora de campo, autodestrutivo, alguém que deixe a vida em campo pelas vitórias ou que transforme as derrotas em vitórias, inventor constante. Maradona se torna o Martin Fierro, o gaúcho rebelde e valente que luta contra tudo e todos, inclusive a FIFA, em nome dos ideais que defende, como quando fez o sul da Itália todo torcer pela Argentina,
na Copa de 1990.

Maradona nunca foi responsável e nem esperamos que seja. Enquanto jogadores querem fazer números para “marcar a história”, sendo poderosos e disciplinados, Maradona é uma figura tão acessível e real que chega a ser mítico ao mesmo tempo, já que transformou a lenda do pibe em realidade.

Dia 30 de outubro é data-pátria, mas não apenas em Lanús, Paternal, la Boca ou cada rincão da Argentina. Nem mesmo em Napoles ou no mundo.

É data-pátria no futebol que deve ser celebrada com cervejas, alentos, amor e devoção. Aquilo que falta no futebol e quem infelizmente só relembramos em datas como essa.