Portal Agência Pública detecta viés econômico em incêndios em favelas

Levantamento feito em parceria com o Guardian Cities revela que comunidades atingidas estão localizadas em áreas cerca de 75% mais valorizadas que a média. Confira trechos da matéria de Iuri Barcelo.

Em São Paulo, onde mais de 1 milhão e meio de pessoas vivem em 1.700 favelas, esse tipo de desastre é tão comum que alguns moradores passam por ele mais de uma vez. Entre 2001 e 2012, os bombeiros registraram nada menos de 1.648 incêndios em favelas. Em 2016, foram 202 casos, e este ano, 81.

A pesquisa feita pela Pública em parceria com o Guardian Cities partiu de um relatório da Defesa Civil com informações de 80 incêndios de 2008 a 2012. O valor venal médio das áreas que compõem esse grupo de favelas atingidas foi de R$ 291 em 2013, segundo estimativas do Sindicato da Habitação (Secovi), que representa as empresas imobiliárias da cidade. Já o mesmo cálculo feito para uma amostra aleatória de 460 favelas registrou valor de R$ 167 no mesmo ano.

Ou seja: em média, as favelas atingidas por fogo estão em áreas que têm valor venal cerca de 75% mais alto que as demais.

A frequência dos incêndios é também maior nas áreas nobres. Foram 23 ocorrências nos 15 distritos com maior valor de lançamentos imobiliários nos últimos cinco anos. Esses distritos aglomeram 145 favelas – o que significa que houve uma taxa de um incêndio para cada seis comunidades nessas regiões. Nos outros distritos, que comportam as restantes 1.559 favelas da cidade, foram registrados 52 incêndios. Taxa bem menor: uma ocorrência para cada 29 favelas.

As autoridades negam uma possível associação dos incêndios com a valorização imobiliária dos terrenos atingidos. Uma CPI criada em 2002 na Câmara dos Vereadores para investigar a suspeita de incêndios criminosos determinou como causa “uma somatória de fatores”, incluindo o clima, baixa umidade, sobrecarga de energia em instalações elétricas precárias, uso de botijões de gás e construções de madeira.

“Eles só falam disso quando tem incêndio. Passam uns dias e todo mundo esquece”, reclama Rudinéia Arantes, líder comunitária da favela do Piolho, no distrito de Campo Belo. Ela admite que as estruturas de construção são perigosas. As instalações elétricas que os moradores puxam clandestinamente para seus barracos frequentemente estouram, gerando princípios de incêndio. E a verticalização dos barracos de madeira faz com que as chamas se espalhem facilmente pela comunidade. “Era pra resolver as questões dos postes, das fiações… e nada foi feito”, denuncia.

Famílias convivem com repetidos incêndios

Na noite de 7 de setembro de 2014, a favela do Piolho, também no Campo Belo, foi tomada por chamas que destruíram 80% dos barracos e desabrigaram 264 famílias. Seus moradores eram vítimas do segundo grande incêndio em apenas dois anos.

Hoje, é difícil imaginar que a Piolho foi quase que totalmente consumida pelo fogo em 2014. A quadra que estabelece os limites da comunidade está completamente tomada por barracos novamente – seja pelo retorno de antigos moradores ou de novos habitantes que almejam uma vida perto do centro.

Assim como a Levanta Saia, a favela do Piolho acompanha a margem da Roberto Marinho, avenida que leva à Marginal do Rio Pinheiros, uma das principais vias da cidade. Pequenas favelas se encaixam nos terrenos ainda não tomados pela forte demanda imobiliária sobre o bairro. Em uma cidade bastante desigual, esse é um bairro privilegiado: são vários os equipamentos de saúde, educação e transporte na região.

“A gente mora num bairro em que a especulação é fora do normal. Mas aqui você tem vínculo. Aqui tem os equipamentos públicos. Tem escolas, ONGs, comércio, creches e tudo mais”, argumenta Rudinéia. “Por que você sairia daqui? O que a gente queria era ter uma habitação regular aqui mesmo”.

Carla Aparecida tem cinco filhos aos 34 anos e é uma das que retornaram à Piolho após o incêndio de 2014. “Até as necessidades a gente tem que fazer no baldinho porque ainda não tem banheiro”, diz, apontando para as paredes do barraco que ela mesmo levantou.

Todos os móveis se concentram num ambiente de aproximadamente 4 metros quadrados. Nele se misturam fogão, duas camas, as roupas e pequenos objetos. Num cômodo separado por uma folha de madeirite, há também um pequeno tanque e um chuveiro.

O incêndio de 2014 foi o terceiro a atingir a família de Carla. Ainda em 2012, eles tiveram todos os pertences queimados numa tarde de setembro. “Demorei mais de um ano para reconstruir meu banheirinho e, quando eu estabilizei tudo e só faltava uma geladeira pra mim, veio o [outro] incêndio. Queimou tudo, tudo, tudo”, lamenta.

Carla conta que após os incêndios chegou a receber um auxílio emergencial da prefeitura, que é condicionado à saída dos moradores da região. Mudou-se para uma favela na zona leste, mas as filhas não aceitaram morar tão longe e se mudaram para a casa do pai, em Moema. Carla acabou retornando novamente à favela do Piolho, onde é mais fácil achar trabalho. Embora esteja desempregada, ela já trabalhou como doméstica e coletando materiais recicláveis.

De favela em favela

Adriana Alves escolheu a Piolho como destino quando foi vítima, em 2007, de um incêndio em outra favela da região, a do Jardim Edite. Já em 2014, quando seu barraco na Piolho foi destruído pelo fogo, continuou sua jornada entre as favelas da zona sul. Foi morar de aluguel em Paraisópolis com a promessa de ajuda de R$ 400 da prefeitura até que recebesse uma moradia definitiva. Mas recebeu somente os três primeiros meses de auxílio. Não fosse a luta travada na Justiça, encerrada em setembro deste ano, não voltaria a receber a verba prometida. E o conjunto habitacional que abrigaria em definitivo esses removidos, previsto para 2013, ainda não foi entregue.

Nas folhas do processo que Adriana moveu contra a prefeitura, um documento interno da Secretaria de Habitação mostra que o órgão avaliava que ela teria direito ao auxílio. No entanto, a prefeitura cortou o benefício alegando irregularidades no cadastro, em razão de sua mãe já ter sido contemplada com uma moradia quando era mais jovem. A Justiça decidiu em favor de Adriana, que voltou a receber o benefício.

Procurada pela Pública, a prefeitura alega “que após as análises documentais, 247 famílias comprovaram vínculo com a área e atualmente recebem auxílio aluguel. Todas essas famílias serão contempladas com moradias definitivas ao longo dos próximos anos. O restante das famílias teve seus atendimentos suspensos devido à falta de documento com comprovação de vínculo com a área”.