Paulo Kliass: Juros ou previdência?

A divulgação do documento “Ajuste justo” elaborado pelo Banco Mundial (BM) pretendia cumprir um importante papel de ampliar o espectro de apoio político à política do desmonte do Estado e da destruição das políticas sociais. O estudo havia sido encomendado ao BM ainda em 2015, pelo então Ministro da Fazenda de Dilma Roussef, Joaquim Levy.

Por Paulo Kliass*

austeridade

O material continua a repetir o mantra tão querido ao povo do financismo: a missão mais nobre para o gestor público é aquela de cortar e cortar despesas. O diagnóstico de nossas dificuldades na área fiscal é encarado como sendo única e exclusivamente um problema de excesso de gastos. Não se cogita que a necessária recuperação da economia deve atuar como um fator de elevação da capacidade de tributação. Assim, com a retomada do crescimento, o Estado pode retomar níveis de arrecadação de receita que sejam capazes de dar conta das reais necessidades das políticas sociais e dos investimentos públicos tão urgentes.

Além de ignorar solenemente a alternativa de recuperação do equilíbrio fiscal pela via do aumento de impostos a curto e médio prazos, a equipe do BM propõe um conjunto de medidas com foco apenas na redução das despesas orçamentárias. Na verdade, como se trata de uma encomenda de uma equipe de governo alinhada com o pensamento da ortodoxia liberal, o pacote de sugestões não oferece nenhuma surpresa para quem acompanha o tom das intervenções do BM pelo mundo afora.

Previdência não é conta “gastadora”

O texto retoma o argumento falacioso a respeito do peso das contas previdenciárias no conjunto do orçamento. Assim, no entender da tecnocracia baseada em Washington, qualquer medida “séria” de contenção fiscal deveria passar pela compressão radical dos gastos com a previdência social. O problema é que o arranjo envolvido no Regime Geral da Previdência Social (RGPS) não se traduz na conta estruturalmente mais deficitária do governo federal. É fato que os gastos são relativamente elevados para dar conta da missão constitucional de apoio à seguridade social. Afinal são mais de 34 milhões de benefícios sob a responsabilidade do RGPS, com todas as consequências em termos de apoio social e de redução das desigualdades socioeconômicas em nosso País.

Mas o documento do BM se esquiva de mencionar aquela que é, de fato, a conta mais estruturalmente deficitária dos gastos da União. Refiro-me ao total de despesas realizadas com o pagamento de juros e demais serviços da dívida pública. De acordo com as informações constantes na edição mais recente do Boletim de Política Fiscal do Banco Central, os números são impressionantes. Ao longo dos últimos 12 meses foram direcionados R$ 414 bilhões para esse tipo de dispêndio.

E o documento não dedica uma linha sequer a respeito de quais seriam as sugestões do BM para reduzir esse gasto estrondoso, que compromete de forma contundente o nosso equilíbrio fiscal. O fato concreto é que uma parcela expressiva de nosso orçamento é dirigida para a manutenção de um sistema que reproduz e amplia as desigualdades e estimula o parasitismo de um tipo de atividade econômica improdutiva. As preocupações da equipe se resumem a condenar os gastos com saúde, com educação, com assistência social e outros, mas não mencionam medidas para diminuir a despesa que não agrega valor e que não promove a distribuição de renda.

Despesa com juros é privilégio

Os representantes do financismo enchem a boca para nos assustar com os valores do RGPS. É bem verdade que os R$ 554 bilhões alocados ao longo dos últimos 12 meses impressionam. O Boletim Mensal com o resultado da previdência social é bastante elucidativo a esse respeito. No entanto, os defensores do desmonte se esquecem de mencionar que a conta previdenciária tem uma receita arrecadada correspondente. Os trabalhadores e as empresas recolhem a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento, de maneira que as necessidades de financiamento do regime previdenciário dependem, basicamente, do nível de emprego e da formalização dos contratos de trabalho.

Já a conta de juros, ao contrário, é absolutamente gastadora. Não existe nenhuma receita vinculada a esse tipo de atividade. Trata-se de um ralo de desperdício de recursos públicos, por onde chegou a ser drenado mais de meio trilhão de reais das contas do governo federal em 2015. A respeito disso, o documento do BM nos oferece um vergonhoso silêncio.

Além disso, há que se chamar a atenção para a diferença entre os efeitos multiplicadores dos dois tipos de despesa. O pagamento de benefícios previdenciários se dirige às parcelas mais pobres da população brasileira, aquelas que apresentam o recebimento de valores mais baixos em sua renda mensal. Para se ter uma ideia, 68% dos benefícios do INSS são iguais ou inferiores a um salário mínimo. Caso se incluam os benefícios até 2 salários mínimos, esse percentual sobe a 84%. Ou seja, ao contrário do que afirma o documento do BM, não estamos tratando de privilegiados. Aliás, muito pelo contrário!

Essas camadas da população, por outro lado, acabam sendo ainda mais penalizadas pela regressividade de nossa estrutura tributária. Isso significa que as faixas de renda mais baixa contribuem muito mais que proporcionalmente para arrecadação de impostos, quando comparadas aos estratos de renda mais alta. Assim, de cada real que o governo destina ao pagamento de benefícios do RGPS, quase R$ 0,50 retorna aos cofres públicos sob a forma de impostos (federais, estaduais e municipais).

Ajuste injusto do BM

Já quando se analisa o gasto com juros, a situação é diametralmente oposta. As camadas do topo da pirâmide são as que mais se beneficiam desse tipo de despesa da União e conseguem organizar suas finanças de modo a não pagar os impostos que seriam socialmente justos. Sob o pomposo título de “planejamento tributário”, essa prática análoga à sonegação aprofunda ainda mais o quadro das desigualdades.

As sugestões do “Ajuste justo” são vergonhosas. Ao invés de esclarecer o público a respeito das reais causas de nosso desequilíbrio fiscal, o documento se contenta em sugerir os cortes generalizados nas rubricas de natureza social. O BM não apresenta nenhuma alternativa de arrecadação para elevar as receitas e não menciona a possibilidade de se reduzir a conta mais gastadora de todas – as despesas com juros.

Entre juros e previdência, o BM fez sua escolha. Assim como toda nossa elite financista e os colunistas de economia dos grandes meios de comunicação. A prioridade, no entender dos tecnocratas, é manter intacta a estrutura do modelo concentrador de renda. Assim, oferecer uma aposentadoria mensal de um salário mínimo a um trabalhador que passou sua vida labutando em atividades rurais é um privilégio. Por outro lado, partilhar as várias centenas de bilhões de pagamento de juros entre uns poucos do segmento do topo da pirâmide é ser eficiente na condução da política fiscal.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.