Banco Mundial: pouco rigor e classificação por renda distorcida
No relatório encomendado pelo governo brasileiro há pouco rigor técnico-científico e impropriedades na classificação por renda: para o Banco Mundial os ‘extremamente pobres’ recebem até R$ 92/dia, enquanto que aqui se usa o parâmetro de R$ 2,33/dia para programas como o Bolsa Família.
Por Rafael da Silva Barbosa*
Publicado 15/12/2017 15:15
O atual relatório do Banco Mundial – “Um Ajuste Justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil” – sobre a eficiência do gasto público no Brasil tem gerado diversas reações tanto no meio social quanto na área de pesquisa do país. À luz do rigor científico, dentre as mais variadas observações, uma em particular tem causado maior incômodo, a saber: como um estudo caro e feito por especialistas internacionais e nacionais não apresenta o Anexo Metodológico em sua publicação oficial?
Mesmo que preliminarmente, para afirmações tão categóricas era de se esperar um compromisso técnico-científico maior da instituição para validar sua posição. Quem ler o texto com mínimo de atenção verificará uma quantidade não desprezível de informações distorcidas ou confusas, que, ao longo do trabalho, se mostram pouco condizentes com os dados oficiais do Estado. Isto sem mencionar o linguajar não adequado (ver citação a baixo) e a falta de clareza nas definições, classificações e agrupamentos.
Um exemplo é a seção “Programas de Apoio ao Mercado do Trabalho e Assistência Social” do documento. Nele, parece haver uma impropriedade significativa na classificação social dos grupos de renda, onde a definição dos estratos de renda – “extrema pobreza”, “pobreza”; “vulneráveis”, “classe média” e “classe média alta e ricos” – está totalmente fora da realidade mundial e brasileira. Conforme visto na nota de rodapé das figuras 67 e 68, a classificação por dia apresenta valores muito acima dos já conhecidos limites para definição de pobreza.
2.Esta figura utiliza a renda pré-transferência, bem como as linhas de pobreza e classificações de renda nacionais. Os resultados devem ser considerados com cautela, pois a incapacidade de distinguir entre os principais tipos de benefício na PNAD (após 2006) exige a adoção de fortes suposições. (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 96).
A princípio essa distorção na definição dos estratos indica ser um possível erro de digitação, mas na sequência da leitura a classificação reaparece, novamente, na análise do texto principal do documento, na página 98:
A redução do BPC aos níveis médios dos benefícios sociais não contributivos da OCDE economizaria 0,7% do PIB até 2025, em comparação com as previsões de linha de base (Figura 69). No entanto, isso implicaria em um aumento da taxa nacional de pobreza de 8% para 9% de domicílios abaixo da linha de pobreza de R$ 140 por dia (e de 24% para 25% de domicílios abaixo da linha de pobreza internacional de US$ 5.5 por dia), com aumentos maiores na pobreza entre os indivíduos acima dos 65 anos de idade. Porém, uma redução do benefício do BPC a um nível equivalente a 60 por cento do valor atual, economizaria cerca de 0,43% do PIB até 2025 e não teria impacto significativo no nível de pobreza. (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 98).
A afirmativa de que os grupos “extremamente pobre” e “pobre” recebem de R$ 0 a R$ 92 e R$ 92 a R$ 185 por dia, respectivamente, não faz sentido nem mesmo para os parâmetros internacionais da própria instituição. De acordo com o site do Banco Mundial, a linha de pobreza (poverty line[1]), ajustada em 2015, é de US$ 1,9[2] por dia, o que em termos cambiais representa cerca de R$ 3,2 na cotação média de novembro de 2017.
No âmbito nacional, a inconsistência permanece, os estratos sociais de renda expressos no relatório não se justificam sequer diante dos múltiplos parâmetros de pobreza utilizados pelo governo brasileiro. Para se ter uma noção, o famoso programa Bolsa Família define como grupo “extremamente pobre” famílias com renda domiciliar per capita de até R$ 70,00 mensal ou R$ 2,33 por dia, ao passo que o Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social BPC-LOAS estabelece como linha de acesso um percentual de 25% do salário mínimo para idosos e deficientes com rendimento domiciliar até R$ 197,00 mensal ou R$ 6,56 por dia, para um salário mínimo de R$ 788,00, em 2015. Mesmo o parâmetro mais alto do governo nem chega perto das faixas estipuladas pelo banco, o critério para as famílias pobres se inscreverem no Cadastro Único das Famílias alcança no máximo, em 2015, cerca de R$ 394 mensal ou R$ 13,13 por dia, perfazendo 50% de salário mínimo per capita.
A deturpação é tamanha que a atualização monetária não surtirá qualquer efeito sobre os valores, visto que os rendimentos por dia do documento estão distantes demais da realidade.
A contar pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, também presente no relatório, é nítido o desajuste da classificação social por rendimentos. Na tabela 3, verifica-se que os rendimentos por dia dos domicílios que recebem entre ½ a 1 salário mínimo estão na faixa de R$ 6,53 a R$ 23,93, ficando muito longe da definição do Banco Mundial para pobreza.
A impressão que fica é que o relatório pouco se atinou ao rigor técnico-científico para o desenvolvimento do trabalho, o produto final sugere descuido não só da linguagem, mas também nas estimativas, principalmente, ao não apresentar o Anexo Metodológico, além da quantidade considerável de impropriedades descritas no decorrer do documento.
Notas
[1] Disponível em: http://www.worldbank.org/en/news/video/2017/04/14/what-are-poverty-lines.
[2] People living below a poverty line don’t have enough to meet their basic needs. Countries typically define national poverty lines, and we use the lines of a group of the poorest countries to define the international extreme poverty line of $1.90 per day.
Referência
BANCO MUNDIAL. Um Ajuste Justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil: volume I (síntese). Washington, D.C. : World Bank Group. 2017.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores Sociais Municipais: Uma análise dos resultados do universo do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: Estudos e Pesquisas Informação Demográfica e Socioeconômica, número 28. 2011.