Alemanha: o início do acordo para formar o governo

As negociações entre a conservadora Angela Merkel e o social-democrata Martin Shulz, ocorridas na última semana, resultaram no início de um acordo para renovar a "grande coligação". Posições relativas a zona do euro, imigração e impostos já foram tomadas; agora faltam os detalhes. O acordo tem como objetivo formar um governo que restrinja a participação da extrema-direita, apesar de críticas de membros da SPD

Angela Merkel e Martin Schulz - Clemens Bilan

A União Democrata-Cristã (CDU) e o Partido Social-Democrata (SPD) chegaram na sexta-feira (12) em um princípio de acordo para formar o governo alemão, que se traduziu em um esboço de 28 páginas que será apresentado aos membros dos dois partidos. Partes do documento citado pela Reuters anunciam a intenção de “formar um Governo estável”, que seja “um novo começo para a Europa” e que “fortaleça a coesão social”. O documento está sujeito a alterações.

Reforçar a zona euro

Um dos pilares defendidos por Martin Schulz, líder do SPD e ex-presidente do Parlamento Europeu, e que era condição essencial para a coligação, é o compromisso da Alemanha com o fortalecimento do projeto europeu. No capítulo “Um Novo Acordar Para a Europa”, o esboço de acordo prevê o reforço dos poderes do Parlamento Europeu e um aumento da capacidade financeira da União Europeia, estando a Alemanha disposta a contribuir mais para o orçamento comunitário.

Em relação a uma eventual adesão da Turquia à União Europeia, os conservadores e sociais-democratas concordam em não fechar nenhum capítulo nem abrir nenhum novo. Rejeitar o protecionismo e o nacionalismo e reforçar a cooperação internacional são outros dos pontos essenciais do acordo. A necessidade de fortalecer o papel de liderança na ação pela proteção climática internacional também é sublinhada. Outro dos objetivos é aprofundar as relações franco-alemãs, com projetos como a abertura de um novo centro conjunto para o estudo da inteligência artificial.

O presidente francês Emmanuel Macron foi o primeiro a manifestar sua satisfação com o princípio de acordo, que não deixou dúvidas quanto a uma reforma do euro próxima de Paris: “em estreita cooperação com a França, queremos reformar a zona euro de forma a fortalecer a sua sustentabilidade, para que o euro possa enfrentar crises globais”, diz o documento.

Limitar a imigração e congelar os impostos 

Os dois partidos concordam em limitar a entrada de refugiados no país e impor algumas condições para a reunificação de famílias, para melhorar a gestão da crise de refugiados e evitar um fluxo de entrada semelhante ao de 2015, quando o país recebeu um milhão de requerentes de asilo.

De acordo com fontes da AFP, o documento prevê limitar a entrada de refugiados na Alemanha até 200 mil pessoas por ano. Nos novos parâmetros, a reunificação das famílias que vivem como refugiadas na Alemanha também será reduzida e as autorizações serão limitadas a mil familiares por mês. Os partidos defendem também a criação de uma comissão especialista que analise a capacidade da Alemanha para integrar os refugiados. Outra das prioridades é concentrar esforços na resolução das causas dos fluxos migratórios. Além disso, ambos os partidos defendem um sistema de asilo europeu que responda à crise de refugiados através de uma distribuição justa de pessoas que precisam de ajuda pelos vários países da União europeia.

Já a subida dos impostos pedida pelos sociais-democratas não deverá avançar, de acordo com o documento. Ainda no plano econômico, os dois partidos pretendem abolir gradualmente a taxa social de solidariedade introduzida após a reunificação alemã, em 1990, para apoiar as regiões mais pobres do país.

Investimentos em educação e ciência, diminuição da venda de armas e meio-ambiente

No lado dos investimentos, a educação, investigação e digitalização deverão receber 5,95 mil milhões de euros até 2021. Além de limitar a exportação de armamento, o futuro bloco central pretende acabar com a venda de armas aos países envolvidos com o conflito no Iêmen.

Quanto ao ambiente e aos objetivos climáticos, os partidos defendem o aumento da produção de energia renovável para 65% até 2030. Paralelamente, reforçam a necessidade de cortar as emissões de dióxido de carbono em 55% para a mesma data, através da aprovação de uma lei que garanta a capacidade do país de atingir essa meta, reconhecendo ainda os objetivos climáticos estipulados para 2020, 2030 e 2050.

Já na produção agrícola, as propostas defendem o fim da produção nacional de plantas geneticamente modificadas bem como o fim do uso do glifosato, um herbicida potencialmente cancerígeno, cuja licença foi renovada por mais cinco anos, numa decisão aprovada pela maioria dos países da União Europeia, em novembro de 2017.

O caminho até aqui

A primeira-ministra Angela Merkel foi reeleita nas eleições de setembro, mas ainda assim i rendimento de seu partido (CDU) foi baixo, conquistando pouco espaço no parlamento. O SPD teve seu pior resultado após a Segunda Guerra, conquistando apenas 20% dos votos, o que fez com que o partido negasse uma nova aliança com a CDU, além de Schulz declarar que os sociais-democratas voltariam para a oposição. Contudo, tal decisão logo foi repensada: a AfD, extrema-direita alemã, conquistou 12% dos votos e voltou a ter voz no parlamento pela primeira vez depois da queda do nazismo no país. Esse cenário não deixou escolha para o SPD e para a CDU, que decidiram negociar para evitar alianças com a AfD e restringir sua atuação no governo.

Ainda assim as vozes mais críticas dentro do SPD insistem que uma “grande coligação terá consequências negativas para a democracia” e alertam para o fato de que a AfD, o terceiro maior partido no Bundestag, pode passar a ter o estatuto oficial de líder da oposição.

Em matéria de agenda interna, é visível que, desta vez, os sociais-democratas conseguiram ir bem mais longe do que em 2013, quando a chanceler ainda reinava sem contestação. Com um crescimento econômico de 2,3%, um desemprego quase residual e um excedente orçamental significativo, os sociais-democratas tinham mais argumentos para a sua agenda social, que passa pelo aumento do investimento público e pela melhoria de algumas políticas que ajudem a distribuir mais equitativamente o excedente. Em 2013, tinham conseguido apenas a garantia de um salário mínimo e um pacote de investimento bastante limitado.

Nos outros grandes temas, o resultado das negociações reflete também uma agenda interna mais equilibrada entre a CDU/CSU e o SPD. Em matéria de imigração, um tema que ganhou o topo das preocupações dos alemães, o entendimento foi mais difícil. Schulz queria que a reunificação familiar fosse consentida; a CDU queria um prazo alargado até à sua concretização. O entendimento prevê um limite de 1000 pessoas por mês no âmbito da unificação familiar, apenas restrito aos cônjuges e aos filhos, desde que haja igual número de saídas de quem não conseguiu o estatuto de refugiado. Ambos concordaram que a Alemanha deve dar prioridade aos imigrantes mais qualificados (uma vez que os patrões precisam deles desesperadamente).

O SPD cedeu alguma coisa na questão dos impostos. Merkel queria baixar o IRC das empresas para valores mais competitivos; Schulz queria mais dinheiro para financiar as políticas sociais. Foi encontrado um meio-termo. Há a promessa de uma redução generalizada dos impostos das pessoas singulares de cerca de 10 mil milhões de euros até 2021. O fato de que em breve uma nova greve do maior sindicato alemão (4 milhões de membros), a IG-Mettal, que representa a grande indústria metalomecânica, incluindo o setor do automóvel, é um sinal de que vai haver maior pressão sobre políticas favoráveis ao consumo. Para a Europa, são boas notícias.

Ainda existem, no entanto, algumas divergências importantes entre os dois partidos, especialmente no quesito da política externa. Schulz não quer aumentar o orçamento da Defesa estipulados pela Aliança Atlântica (2024) e aceitos pela União Europeia, já Merkel quer. O SPD não dá a mesma prioridade às matérias de segurança e defesa, que hoje estão no topo da lista de muitos governos europeus. A política da chanceler em relação à Rússia, incluindo as sanções, também não agrada ao SPD, tradicionalmente mais próximo de Moscou. Esse é outro ponto sensível em nível europeu.

Assim como era defendido por Schulz, será proibida a venda de armas aos países envolvidos no conflito do Iêmen, relativa a Arábia Saudita, para quem a Alemanha é uma importante fornecedora de armamento.

O primeiro passo foi dado e foi maior do que o esperado. Agora faltam os detalhes do acordo que, segundo membros do partido de Merkel, deverá estar pronto até meados de fevereiro, para que na Páscoa o novo governo já esteja atuando.