El Salvador, entre a violência das gangues e o abuso policial
Na última semana, o governo Trump anunciou que encerrará em breve um programa que protege vários imigrantes de El Salvador da deportação. Membros do governo alegam que o principal motivo para conceder o Status de Proteção Temporária (TPS) a essa população (os dois devastadores terremotos de 2001) já não é pertinente.
Por Cora Currier, Natalie Keyssar*
Publicado 18/01/2018 14:33
Ao usar essa lógica, evitaram tocar na principal razão pela qual os salvadorenhos temem regressar: a violência de gangues, que tornou o país um dos lugares mais perigosos do mundo. A maior parte dos salvadorenhos protegidos pelo TPS está nos EUA há mais de vinte anos, e o país para onde Trump quer mandá-los de volta tem um perfil muito diferente e perigoso.
No primeiro semestre do ano passado, a fotógrafa Natalie Keyssar fotografou a juventude dos bairros controlados por gangues em San Salvador, capital de El Salvador. Esses jovens estão encurralados entre as duas famigeradas gangues MS-13 e Barrio 18, que ganharam poder depois que seus líderes foram deportados de Los Angeles e regressaram ao país nos anos 1990, e a repressão indiscriminada das forças de segurança, com apoio dos EUA, que está piorando a situação de violência.
Crianças e adolescentes em El Salvador enfrentam ameaças bem documentadas nas mãos das gangues, de extorsão a recrutamento forçado como membros ou “namoradas” de membros. Presenciar alguém das gangues cometendo um assassinato, ou simplesmente estar na parte errada da cidade ou na linha errada de ônibus, pode equivaler a uma sentença de morte.
A violência policial também não para de aumentar. Pela mera suspeita de que sejam membros de gangues, jovens pobres são parados, questionados, detidos, e, em alguns casos, mortos. Extorsões e apreensão de telefones celulares são comuns. Os ativistas dizem que a polícia frequentemente planta provas e se baseia em indícios frágeis de filiação a gangues. Além da violência física, há um estigma social e econômico disseminado em relação aos moradores das áreas onde a presença das gangues é forte.
É impossível para os jovens dos bairros pobres não interagir de alguma forma com as gangues, conta Tatiana Alemán, jornalista que se tornou ativista depois que seu irmão mais novo foi detido, falsamente acusado de pertencer a uma gangue. “Conhecemos essas pessoas desde crianças”, disse ela. “Mas se a polícia vir você com um deles, pode esquecer, você vai ser acusado de colaborar.”
Muitos jovens salvadorenhos dizem que têm tanto medo da polícia quanto das gangues. Meibi, uma moça do bairro de Zacamil, um dos redutos da Barrio 18 em San Salvador, conta que é constantemente assediada pela polícia. Ela não pode sair do bairro porque o endereço em sua carteira de identidade faz com que as pessoas presumam que ela faz parte da gangue. Em abril, um jovem rapper de Zacamil, cujo nome artístico é Demo, foi preso durante uma operação da polícia, logo após a morte de um agente, dias depois de Keyssar fotografá-lo para esta reportagem. Demo foi liberado três meses depois, mas ainda teme uma possível retaliação, porque os policiais acreditam que ele seja culpado. (Por questões de segurança, The Intercept divulgará os sobrenomes dos jovens salvadorenhos.)
Demo contou que já havia testemunhado o assassinato de dois amigos — um pela polícia, o outro pelas gangues. “Já perdi a conta de quantas pessoas vi serem mortas na minha frente”, declarou ele em abril, antes de ser preso. “Dizem que violência gera violência, mas estou tentando não ser assim. As duas gangues dividem o país todo. Aqui em Zacamil, às vezes, duas casas que dividem parede formam a fronteira entre uma gangue e outra. Só quero que sejamos vistos como pessoas.”
Em algumas áreas, o clima de tensão chega a ser sufocante. Ao falar das gangues, as vozes subitamente baixam de tom e passam a se referir, de forma velada, a “números” (Barrio 18) e “letras” (MS-13). Para entrar em um bairro dominado por uma gangue, quem é de fora precisa de um acompanhante e deve abrir os vidros do carro para se identificar. Vigias seguem os visitantes, e a tensão toma conta de todos.
Daniela, de doze anos, contou que só pode sair de casa para ir à escola ou jogar futebol. Os pais acham qualquer coisa além disso muito perigosa. Enquanto as crianças faziam biscoitos e ensaiavam uma coreografia num centro comunitário do bairro de San Roque, em outubro, uma das mães confessou que tinha entrado para o voluntariado só para poder sair de casa. “Não há lugar seguro, eu estava sempre sozinha, minha filha sempre enfiada dentro de casa.” No começo da semana, uma voluntária havia sido morta no caminho para buscar seu filho.
Tanta tensão social contribuiu para o surgimento de uma onda de jovens tentando sair da América Central e chegar à fronteira sul dos EUA para pedir asilo ou atravessar ilegalmente. Essas crianças não estão aptas a solicitar a proteção do TPS, o programa que Trump acabou de cancelar. Muitas delas, porém, têm parentes nos Estados Unidos que foram aceitos por esse ou algum outro programa de imigração. E dependem deles, inclusive financeiramente. Cada decis§o de Trump que restringe as alternativas para os refugiados e outros tipos de migrantes provoca um efeito-cascata.
Em um evento promovido por uma organização de assistência jurídica em Los Angeles, na segunda-feira (8) à noite, logo depois do anúncio sobre o TPS, Stephanie, uma cidadã norte-americana de 21 anos, estava com seu pai, Mario, um beneficiário do TPS que está nos Estados Unidos desde 1993. (A dupla pediu para ser identificada apenas pelos primeiros nomes.) Os primos de Stephanie em El Salvador contam histórias sobre extorsões e espancamentos. “Eles não saem de casa porque sentem medo”, disse ela.
“Imagine se alguém beneficiado pelo TPS tem filhos aqui, e precisa levá-los de volta para El Salvador”, continuou. “Ninguém está preparado para uma mudança tão drástica. Eles ficariam deprimidos, amedrontados.”
Ficar em El Salvador significa se adaptar e resistir. Alemán e sua mãe criaram uma página no Facebook para reunir as vítimas de violência policial e de prisões ilegais, chamada “Los Siempre Sospechosos de Todo” — “Os Sempre Suspeitos de Tudo”. O nome do grupo vem de um verso do poeta mais famoso de El Salvador, Roque Dalton, que denuncia a criminalização dos salvadorenhos pobres. Los Siempre Sospechosos faz performances pela cidade e prega cartazes com os rostos das vítimas de violência policial.
“Queremos inspirar as pessoas para gerar uma cultura em que essas coisas sejam denunciadas”, explica Alemán.
Outros organizam espaços para que as crianças e os adolescentes possam fugir da permanente troca de tiros entre gangues e policiais. Sentado na beirada de uma rampa de skate em um parque, em abril, Alejandro falou da origem do seu coletivo informal, que leva projetos artísticos a Zacamil. Ele passa os dias dando aulas de pintura para alunos de ensino fundamental (alguns deles filhos de membros de gangue), andando de skate com adolescentes enquanto discute a brutalidade da polícia ou cultivando relacionamentos com organizações que possam ajudar seus colaboradores quando eles se envolvem em encrencas. Crescer em áreas controladas por gangues o ajudou a entender as necessidades de uma comunidade que é pintada como “violenta e irrecuperável”.
“A própria violência contra a qual estamos lutando é o que fez minha mente evoluir até hoje”, ele explicou. “Temos que resgatar o lado humano das pessoas na rua, temos que entender que a rua dá a eles o sentimento de família que não têm em casa.”