Gustavo Guerreiro: O Muro e a Luta

“Para além do contexto nacional, caracterizado pela aprovação de reformas constitucionais e leis de privatizações em clara oposição aos interesses populares, a imposição de soerguimento do muro toca em questões delicadas, do ponto de vista dos direitos humanos”.

Por *Gustavo Guerreiro

Protesto contra o muro na fronteira entre México e Estados Unidos - Reuters

A resistência popular se manifesta na luta internacionalista por diversas formas. Um verdadeiro exemplo de união transnacional se iniciou entre os índios tohonoo'odhams, que habitam ambos os lados da fronteira entre México e EUA e resultou em uma grande mobilização na cidade de Cuetzalan (Norte do México). O evento contou com a presença de diversos povos indígenas mexicanos e representantes dos indígenas estadunidenses do Novo México e Dakota (Arikara,Yaquis e Tohono O’odham) contra a política racista e xenófoba de Donald Trump.

Os camponeses, indígenas e mestiços de Sierra Nororiente de Puebla (região que abrange 28 municípios com presença indígena em todos) demonstraram a sua solidariedade, capacidade de organização na luta e autodeterminação. Como é habitual naquela região, a cada dois meses, centenas de pessoas vindas de 173 cidades e 16 municípios reuniram-se na 18ª Assembleia em Defesa do Território, no último dia 18 de fevereiro, para reafirmar o poder de decidir sobre suas vidas e territórios. O ponto alto do movimento foi a crítica à "política xenófoba e agressiva de Trump contra o México". O aviso partiu de um ato conjunto entre os povos originais dos Estados Unidos e do México, que declararam: "não haverá muro". E prometeram levar a luta em defesa de seu território “até as últimas consequências”.

Antes da demarcação das fronteiras nacionais, os índios já habitavam a região. Seu processo de incorporação à chamada “comunidade nacional” no continente americano não se deu de forma pacífica, mas a partir de intenso derramamento de sangue. Somente se submeteriam após violento genocídio e espoliação de suas terras, situação que se perpetua sob novas formas, como o desmonte da rede de proteção social, a degradação ambiental e agora o impedimento de cruzar fronteiras nacionais. Estamos atualmente lidando com uma crise civilizadora, contra a qual há uma necessidade profunda de repensar os padrões de desenvolvimento e modernidade, bem como fortalecer e construir alternativas que garantam a vida.

A proposta de Trump para a construção do muro não se limita a uma questão de segurança das fronteiras e suscita outra discussão. No México, as populações indígenas enfrentam um profundo colapso socioambiental, marcado pelas políticas de submissão das leis à conveniência dos sistemas de desapossamento e exploração que violam o território, a subsistência da biodiversidade e os modos de vida tradicionais, bem como os direitos sociais e individuais e o patrimônio material e imaterial daqueles povos.

Para além do contexto nacional, caracterizado pela aprovação de reformas constitucionais e leis de privatizações em clara oposição aos interesses populares, a imposição de soerguimento do muro toca em questões delicadas, do ponto de vista dos direitos humanos. Desta forma, as agências multilaterais e os organismos de proteção dos direitos humanos precisam atuar no sentido de evitar e minimizar as ações que fragilizem as relações interétnicas e interfamiliares dos povos que ali vivem desde antes da colonização europeia. A Convenção 169 da OIT estabelece que, quando houver territórios ou povos indígenas binacionais, estes devem ser autorizados a transitar livremente entre os dois países. A construção da muralha de Trump viola direitos fundamentais.

Esta situação é bem compreendida pelos indígenas de ambos os lados da fronteira, e é por isso que eles começaram a fortalecer alianças. Este é o caso das tribos Sioux de Standing Rock e Cheyene River, que se opõem à decisão do governo Trump de construir o oleoduto “Dakota Access”, que havia sido suspenso pelo ex-presidente Barack Obama. Em verdade, a barreira prometida pelo governo xenófobo se reveste de uma cortina de fumaça. Na prática, a construção do oleoduto e do muro transparece elementos bem mais profundos do que o impedimento do trânsito de pessoas e a permissão para o transporte de bens: seres humanos são menos importantes que o capital.

Não resta dúvida de que a política agressiva do governo dos EUA afeta diretamente não apenas os povos indígenas fronteiriços de ambos os países, mas os dois países por inteiro. Criam uma situação sem precedentes que pode ser transformada em uma oportunidade para os povos se unirem. Tudo depende da clareza que têm sobre a situação, a capacidade de transformar a adversidade em oportunidade e a estratégia utilizada para fortalecer as lutas. A unidade das lutas indígenas coincide em dois aspectos fundamentais: são lutas contra a exploração e pela defesa da vida.

*Gustavo Guerreiro é membro da direção nacional do Cebrapaz e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

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