"Nossa elite é interessante. Todos liberais e dependentes do Estado" 

Referência entre os especialistas na área social e econômica, a socióloga e economista pernambucana Tania Bacelar é conhecida pela defesa de políticas públicas em favor da parte de baixo da pirâmide social brasileira. A convite do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) participou do conselho político criado nos governos petistas, que reuniu técnicos de vários segmentos para contribuir com sugestões e críticas. 

Tania Bacelar: “Nossa elite é interessante. Todos liberais e dependentes do Estado” - Divulgação

Professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em outubro de 2017 ela concedeu a entrevista abaixo à Agência Saiba Mais, em Natal (RN), durante o evento Diálogos promovido pela ADURN – Sindicato dos Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Nesta entrevista, Tania Bacelar fala sobre os efeitos da crise na Região Nordeste, alternativas e os desdobramentos das ações do governo Temer. Passados quase cinco meses as ideias e propostas da economista continuam atuais.

A senhora participou, a convite do Governo do Rio Grande do Norte, da primeira tentativa de criar uma região metropolitana em Natal, ainda no final dos anos 1990. Como foi a experiência?

Foi um trabalho muito frustrante.

Por quê?

Porque o conceito (de região metropolitana) não batia com o objeto do trabalho. Então foi muito difícil porque os municípios não compareciam às reuniões, não havia consciência de que havia problemas comuns. As questões que são de tratamento metropolitano não despertavam interesse aqui. Também jogaram municípios que não tinham nada a ver com a metrópole. Esses critérios, que são políticos, têm a ver com a representação dos municípios na Assembleia Legislativa e, sabe-se lá porque, acham que é status integrar região metropolitana. Mas, esse problema acontece em outros estados também. Ceará, Paraíba,só Pernambuco nunca chancelou isso. Para mim foi frustrante (a experiência em Natal), mas nunca mais acompanhei.

Por falar em região, por que a crise econômica afetou mais o Nordeste?

Eu vou defender um pouco o contrário. Os dados mostram que em alguns aspectos afetou mais, mas no geral não afetou tanto. O Brasil vinha de um momento bom, o Nordeste vinha de um momento muito bom e tivemos uma espécie de capacidade de resistência a um primeiro momento da crise pelo acúmulo que tinha sido feito na fase imediatamente anterior. Mas, bateu muito forte no emprego, no mercado de trabalho, porque vinha-se de um ciclo expansivo excelente do emprego. Na renda bateu mais forte e no comércio de serviço bateu ainda mais.

E que áreas não foram tão afetadas?

Na indústria bateu menos e na agropecuária não bateu. Não bateu nem no Brasil nem no Nordeste. A agropecuária está surfando na crise. E o Nordeste tem os investimentos em energia renovável que coincidiram na crise com a consolidação da fase de investimento em eólica. Para alguns estados isso foi muito importante. A eólica já começa a pesar na economia porque o Nordeste trouxe para cá a produção dos equipamentos. A Bahia e Pernambuco produzem aquelas pás da energia eólica que encontramos nas estradas. Então teve a energia e por trás teve a indústria.

Agora, no desemprego pesou muito. Salvador e Recife voltaram a liderar as taxas de desempregos nas metrópoles do país. Sempre foi assim e voltou com muita força. Tanto que o desemprego médio do Brasil está em 13% e o do Nordeste está em 18%, o que é muito alto, ou seja, quase um desempregado a cada cinco pessoas. O Rio Grande do Norte, terceiro em desemprego, levou um cacete muito grande. Merece um estudo a situação do Rio Grande do Norte.

Qual sua expectativa daqui para frente?

A área de comércio e serviços, como emprega muito, afetou o Nordeste demais, e na construção civil também foi muito forte. Porque vinha-se de uma fase de investimentos importantes. Dos grandes investimentos, das obras de infraestrutura, e tudo isso tinha criado muito emprego na construção civil. Quando acabou, o impacto na construção civil foi muito forte. Olhando para frente, acho que o Nordeste tem que abrir o olho. Aqui a gente depende mais de política pública, a crise fiscal é forte. E a tendência é um impacto aqui maior do que nas áreas mais ricas, onde o setor privado tem um peso mais forte.

A tendência é o aumento da desigualdade na região?

Mantidas essas tendências que estão aí, em médio prazo, vai ser pior para o Nordeste. A macrotendência é valorizar o investimento em infraestrutura porque ajuda na retomada. O Brasil precisa muito e é uma frente de expansão econômica importante, é uma cadeia ampla, só que vai se fazer isso com a participação do setor privado. Diferente do século 20, onde era o governo que fazia a aposta agora é “vamos fazer aqui, mas vamos trazer o setor privado”. Então, o Estado vai ser o ente que vai conceder, liderar as PPPs, mas não vai patrocinar. Esse é o modelo que tende a predominar. Mas, esse modelo tem um problema porque quando se coloca o setor privado, a taxa de retorno é uma variável estratégica. Então, onde tem a melhor taxa de retorno? É onde tem a melhor densidade econômica. Logo, o modelo de financiamento leva à concentração naqueles territórios onde a densidade econômica é mais forte.

Portanto, entre Nordeste, Sudeste e Sul, (os recursos) tendem a ir para o Sudeste e o Sul, e dentro do Nordeste tende a ir para as grandes cidades, para o litoral, porque aqui também tem concentração. O litoral do Nordeste tem mais densidade econômica que o interior. Então, acho que a gente tem que fazer dois debates: o primeiro é como é que o Nordeste vai participar desse novo momento, ou seja, qual é a modelagem desses projetos de PPP? Tem gente propondo um fundo garantidor mais pesado para o Nordeste e para o Norte. É possível identificar algumas saídas para o próprio processo. E como o Estado ainda vai ter um dinheirinho, deveria botar mais onde tem menos potencial de trazer investimento privado. O Nordeste e o Norte e, dentro deles, o interior. Mas, é preciso que a gente faça o debate. Senão o rio corre para o mar.

Os governadores criaram um fórum com os chefes do executivo dos nove estados do Nordeste. Isso ajuda ou é apenas um pires maior estendido ao Governo Federal?

O que vejo nesse fórum é que os governadores negaram a Sudene e criaram um fórum paralelo. E no fórum paralelo não tem secretaria-executiva. A agenda do fórum para mim é um problema. O fórum é bom, mas a agenda termina sendo apenas conjuntural. As reuniões acontecem quando um tema relevante aparece e como não tem uma estrutura técnica relevante que apoie aquilo não vem de um debate consolidado, articulado. Eles poderiam ter criado abaixo dos governadores uma estrutura técnica com técnicos dos próprios estados, que construíssem a agenda deles, que desdobrasse a agenda deles para complementar as reuniões. E isso não tem.

Então as reuniões são episódicas e as pautas são episódicas. Eles atuam na conjuntura. Agora mesmo se reuniram e fizeram uma carta contra a privatização da Chesf. Mas, é pontual. E depois, como desdobra isso? Então, acho que tem um erro de concepção do fórum que o leva a esse desdobramento. Na Sudene, você tinha uma secretaria executiva, havia um conselho, eles faziam parte, mas quando saía do Conselho você tinha uma estrutura técnica que tratava aqueles assuntos. Os governos estaduais têm técnicos competentes, mas não tem uma estrutura técnica articulada. É o secretário de Planejamento que fica improvisando a pauta que foi escolhida pelo governador. E não há uma pauta regional.

Se a senhora pudesse definir prioridades para a agenda dos governadores, quais seriam?

Ah, eu colocava essa primeiro. Investimento em infraestrutura. O modelo de financiamento precisa ser discutido. O Nordeste tem duas agendas: como participar do debate nacional e como fazer o debate dentro da região, porque na região também há densidades econômicas muito distintas. Uma coisa é o litoral, outra é o interior.

Que investimentos poderiam ter na Região?

Infraestrutura é minha primeira agenda. O investimento feito em educação superior é uma novidade que aconteceu no Nordeste. A matrícula aqui cresceu mais rápido do que a média nacional e, dentro do Nordeste, cresceu mais no Semiárido do que nas áreas onde ela estava concentrada. Foi uma mudança na última década muito relevante. É um investimento de médio e longo prazo. Então a gente não colheu ainda os resultados porque somos vulneráveis. Os indicadores educacionais do Nordeste são ainda muito distantes da média nacional e, sobretudo, nas regiões mais ricas. Aí o Sul mais do que o Sudeste. Eu colocaria na minha agenda a educação e a educação superior pelo investimento que foi feito no período recente, que foi numa direção muito boa.

As escolas técnicas se multiplicaram durante os governos do PT…

A presença dos Institutos Federais… Eu estive em Pau dos Ferros (RN) e é impressionante a presença daquele Instituto ali e o papel que ele exerce naquele entorno. É uma novidade muito positiva. Gente que jamais teria chance teve chance. Agora, é uma coisa que não se consolida num curto prazo, onde a manutenção é que pesa porque o principal custo de uma universidade é com professor. Então, se começa a cortar aí, a gente pode jogar a banheira com água, com menino, tudo fora. Então, eu botava a educação na minha segunda agenda de investimento. O Governo Federal vai, exatamente, na contramão dessa proposta ao aprovar a PEC do Teto, que congela por 20 anos investimentos. Exatamente. em educação, saúde.

Eu acho que tem duas coisas: uma é atuar nacionalmente para evitar que isso aconteça. Eu tenho uma leitura da PEC 55 de que a sociedade não aguenta. Quando eu vejo as projeções que o próprio Ministério da Fazenda faz na área de saúde, educação e assistência social o corte é muito forte. O tamanho do hiato é muito grande para uma demanda insatisfeita. Não é uma sociedade estável. A demanda de saúde, por exemplo, vai crescer porque a sociedade vai envelhecer muito rapidamente. Então, minha visão é que essa PEC foi aprovada agora, mas quem viver verá, porque a sociedade brasileira não aguenta com ela. Essa discussão vai estar presente nas próximas eleições. Talvez nessa com menos força porque está muito próxima.

Com a PEC 55 caminhamos para a educação privada?

O problema da educação privada é que nem todo mundo pode pagar. Por que a educação ampliou? Porque quem financiou foi o governo. Por que a educação privada cresceu? Porque teve Fies e Prouni. Então, a oferta é privada, mas o financiamento é público e se a crise é pública vai bater neles também. O que eles estão fazendo? Se atrelando a bancos para que os bancos deles financiem os estudantes. Mas, isso tem um limite porque o financiamento do banco tem que ter o retorno que o financiamento público não tem. Então, esse debate nós vamos continuar fazendo. Por isso, eu digo que aquilo ali (a PEC 55) não se sustenta. Então essa é uma linha de trabalho.

A segunda é uma linha de reflexão é sobre o que nós mesmos podemos fazer. Aí é um pouco a universidade olhar para dentro dela porque, na minha visão, tem espaço para a gente se abrir mais. Essa fase boa nos acomodou um pouco. Nossa tradição não é de uma interação muito forte, muito menos com o setor privado. Mas, também, não só com o setor privado é também com outros setores da sociedade civil. A universidade é um pouco isolada. No período das vacas gordas, nosso isolamento aumentou, mas precisamos ver que a gente tem espaço também de interação mais forte.

O problema também foi o modelo de incentivo ao consumo que marcou especialmente o governo Lula e se exauriu no governo Dilma?

Eu defendo que ele continue tá certo?

Mas, ele não se esgotou?

Esgotou-se na expectativa que a gente tinha. O modelo do governo Lula não apostava só no consumo. Todo economista sabe que o consumo é estratégico. Dois terços da demanda brasileira é consumo. Quando você abre o PIB pela demanda mais de 60% é consumo, então ele vai ser uma variável estratégica no Brasil sempre, sempre foi. Quem puxou a economia brasileira no século 20 foi o consumo interno, não foram as exportações. Diferente do Japão, da Coreia do Sul, aqui o mercado interno é uma coisa tão importante. E qual foi a experiência diferente da era Lula? Foi o consumo interno das elites e o fomento do consumo interno da base da pirâmide. A mudança foi quem consumia. Mas, a média da renda brasileira é muito baixa. Então, quem botar as fichas todas no consumo está sabendo que vai colocar por algum tempo.

Houve um erro estratégico então?

A equipe de Lula sabia disso. Tanto que o modelinho era consumo e investimento, tá certo? Porque, se a renda média é baixa você não pode botar suas fichas todas ali. Você tem que combinar isso com investimento. Então, renda média baixa é muito importante. No Nordeste, 70% das pessoas ocupadas ganham entre 1 e 2 salários mínimos. Mesmo o milagre que Lula tentou fazer, que era juntar crédito com a renda e crédito do jeito que a gente gosta, porque ele dobrou o crédito e escalonou no tempo. Então, com 100 reais de uma moto em não sei quantos anos, dá pra você comprar. Mas, depois que você compra a moto, compra a televisão, compra o computador, bateu na sua renda. Sua capacidade de endividamento está limitada pela sua renda. E não dá para apostar. Agora, acho que o Brasil tem esse potencial. Esgotou, temos que desistir? Não! Não vamos desistir, mas vamos combinar melhor isso com o investimento porque acho que vai faltar. É combinar melhor isso. Por que toda empresa de fora quer vir para o Brasil? Todo mundo quer o mercado brasileiro por quê? Porque é um mercado grande, dinâmico, o brasileiro gosta de consumir, se endivida para consumir. Então, porque nós vamos renunciar a um potencial que é nosso? Eu sou contra quem diz “ah, exauriu”. Exauriu não senhor! Deu uma parada que era esperada. Foi mais profunda por conta da crise.

Na fase da economia pujante a senhora cita o governo Lula. Qual foi o pecado da Dilma?

Vários (risos). Vou dizer dois pecados: o primeiro é uma coisa que ela fez certo do jeito errado, que foi patrocinar, em 2012, a queda brusca da taxa de juros. É uma medida econômica pesada, correta, porque a taxa de juros no Brasil é absurda, mas feita de um jeito errado, sem negociação política, sem análise política. Ali ela rompeu o pacto de Lula. Era uma medida econômica que teve um desdobramento político porque o pacto de Lula era um pacto de dizer “vamos melhorar aqui embaixo, mas eu não vou mexer com os de cima”. Então, quando você olha as estatísticas de Lula vê que a base da pirâmide melhora, mas o topo da pirâmide está lá garantido. Com essa medida, ela meteu a faca ali no pacto político que sustentava o governo. Perdeu a briga e teve que recuar. E recuou derrotada. E a partir dali começa o calvário dela. Em 2013, já tem gente na rua, de repente, e em 2014 ela perde a eleição antes de ganhar. Ela perdeu a eleição no primeiro turno porque perdeu o Congresso e se elegeu com a vitória de Pirro. Esse erro teve um desdobramento. Mas, é um erro correto porque a medida, abstraindo o jeito, é uma medida boa.

E o segundo pecado?

O segundo erro foi não perceber a dimensão das mudanças que estavam ocorrendo no ambiente mundial. Porque Lula operou numa janela de oportunidades do mercado de commodities. Com a crise de 2008 e 2009 e a retração da China, de 2010 em diante o mercado de commodities afunda. Então, o que era oportunidade no governo Lula era problema no governo da Dilma. E a equipe dela não conseguiu perceber a profundidade daquela mudança que estava acontecendo, até porque foi muito rápida. E aí, a reação de Dilma foi tentar continuar a era Lula, que já não era mais possível. Por exemplo, eu não entendo o pacto que ela fez com a Fiesp. Por quê? Ela renuncia a R$ 100 bilhões quando a receita já estava caindo para que a turma usasse aquele dinheiro para investir.

Como investir, se o consumo já estava desacelerando? A renúncia fiscal vira pó porque ela não vira investimento porque o mercado já não estava sinalizando. Então, ela aprofundou a crise e não resolveu o problema da retomada da economia. E politicamente também foi um desastre porque a Fiesp também ficou contra ela. Na hora em que ela precisou botaram o pato na Avenida Paulista. Então, deu em quê aquela medida do ponto de vista econômico e do ponto de vista político? Acho que a equipe de Dilma teve dificuldade em perceber o novo momento que estávamos vivendo. O desdobramento inicial da crise mundial no Brasil não foi tão forte, talvez isso tenha contribuído porque não levamos a paulada de uma vez. Acho que houve uma subestimação e tentou-se fazer o que Lula fez no imediato pós-crise que era dizer: vamos continuar consumindo. Ele foi para a televisão, articulou a história da linha branca e ampliou do automóvel para a geladeira.

Faltou articulação política?

Essa era a grande diferença política de Lula para Dilma. Lula sentava com os heterogêneos, conversava. Eu era do conselhão, fui dos dois. A diferença era da água para o vinho. Lula usou o conselhão para gerir a crise. Aí tirou do Conselhão, porque era muita gente, umas dez pessoas, e a história da linha branca saiu das reuniões dele com essa equipe. Lula ouvia as pessoas e no outro dia ele implantava. E animava a turma que contribuía. Lula conseguiu enfrentar a crise de um jeito positivo. Acho que Dilma tentou fazer isso, mas tentou em outra conjuntura e sem diálogo.

A senhora destacou que o grande erro de Dilma foi ter quebrado o pacto político de Lula com a elite. É possível governar o Brasil só investindo na base da pirâmide e retirando privilégios dessa elite?

É preciso, mas não é desse jeito. O povo diz assim: fazer o certo na hora errada e do jeito errado é fazer errado. Eu estou com a sabedoria popular. Tem de escolher o jeito de fazer, como fazer, com quem fazer, quem vai botar para defender. Isso é negociação política e no Brasil essa negociação política é muito difícil porque as nossas elites sempre se apropriaram do Estado brasileiro. A gente vai cortar o SUS com a PEC 55, mas não corta a isenção que o mesmo governo dá para quem tem seguro privado de saúde. Eu tenho seguro privado de saúde. Quando faço minha declaração de rendimento abato o que eu pago do seguro saúde. E quem paga isso? É o mesmo Estado que está cortando o SUS. Por que corta aqui e não corta ali? E no Brasil não é tarefa fácil, é difícil.

A senhora fala muito em investir em infraestrutura, mas a saída também não estaria na distribuição mais justa da carga tributária?

Minha primeira reforma seria a reforma tributária. Mais importante do que todas. Primeiro, porque nosso sistema tributário é ruim economicamente. Só que eu acho que o nosso empresariado tem a bandeira errada. Eles não querem aumento da carga tributária, ponto. Botam um impostômetro na rua e foca no tamanho da carga. Nosso problema não é o tamanho da carga, mas a composição da carga. Qual é a nossa composição? É um sistema tributário que foca nos impostos indiretos e não foca nos impostos diretos. Outros países do mundo, a maioria, faz o contrário. Quando você foca no imposto indireto é ruim para a sociedade porque concentra renda. O imposto indireto entra no preço.

Eu cobro ICMS e o cara bota ICMS no preço, o ISS também. Então, você embute no preço aquela carga tributária. Se eu ganhar dez vezes o que você ganha e pagar este mesmo gravador, nós pagaremos a mesma carga tributária. Então, é injusto por definição. Por isso é que no Brasil quem paga mais é quem tem renda menor e quem paga menos é quem tem renda maior. Agora, economicamente, também é péssimo porque taxa a produção e torna nossas empresas pouco competitivas quando elas se confrontam com os países que fazem o contrário. É preciso fazer esse debate com a sociedade brasileira.

Quando éramos uma economia fechada, protegida para fazer nossas indústrias, isso funcionou, mas no mundo que a gente vive não funciona mais. Então, o Brasil precisa fazer essa discussão. O ICMS é uma excrescência. Pega qualquer empresário lá de fora e tenta explicar para ele o que é o ICMS na origem com alíquota interestadual, guerra fiscal no meio. Sabe o que ele faz? Ele contrata um especialista porque é impossível. O ICMS é no destino. Não sai porque São Paulo perde. E ainda há uma forte dependência dos estados e municípios das transferências federais, o que deixa os mais fracos, especialmente no Norte e Nordeste, reféns da União.

A gente fez o contrário. A Constituinte queria uma reforma tributária onde fôssemos gradualmente descentralizando a receita pública, até porque a Constituinte descentralizou a despesa. Tentou-se descentralizar a despesa e a ideia é que a receita também descentralizasse. Mas, a gente reconcentrou a receita na mão da União. Desde o final dos anos 1980, a União criou as tais das contribuições. Por quê? Ela não divide com estado e município fica só para ela. É o contrário do que o Brasil precisa.

Qual o impacto da operação Lava Jato na economia?

Enorme. Porque pega o núcleo duro das maiores empresas brasileiras em dois setores que eram o carro-chefe do crescimento na era Lula. E acho até que Dilma desconsiderou o impacto econômico da Lava Jato porque (a Lava Jato) pega petróleo e gás e se você olhar o núcleo de investimento de petróleo e gás – pode pegar os números do BNDES – era líder disparado. Então, bate no coração de um segmento que estava puxando a economia, que era petróleo e gás, e o entorno da cadeia. E, segundo, que você bate nas empreiteiras, que é estratégico para fazer investimentos e são nossas maiores empresas. As nossas grandes empresas são empreiteiras transnacionais, que exportam serviços especializados, uma engenheirada brasileira fazendo projeto de ponte, de porto, o que botar eles fazem no mundo inteiro, então não são irrelevantes do ponto de vista econômico. E onde é que a Lava Jato bate? Nos dois pilares. Só sobrou o agronegócio.

A senhora acha que foi de propósito?

Não, mas como era importante também tinha muita corrupção ali. Agora é o seguinte: olhar para a corrupção não significa que você tem que desconhecer o impacto econômico daquilo que está sendo feito.

A Lava Jato quebrou o país?

Com certeza.

Mas, não é exagero?

Sozinha não, mas que ela deu uma contribuição relevante, com certeza. Olhe onde ela bateu. E não é à toa que ela bate onde tem muito dinheiro.

O problema fiscal do Brasil pode ser resumido na frase “a despesa não cabe mais na receita”?

Essa foi a justificativa do governo Temer para aprovar a PEC 55. O governo brasileiro faliu nos anos 1980. Acho que essa é uma mudança relevante porque até os anos 1980, quando a gente fechava as contas públicas, o Estado era superavitário. Com os choques dos juros e o endividamento da era Geisel, a gente entra no vermelho nas contas públicas. Estamos arrastando esse endividamento desde aquela época. A realidade hoje é uma situação fiscal muito complicada. Então, isso não pode ser desconhecido. Portanto, tem que mexer na conta pública.
Mas qual é o problema da PEC 55? É que ela só mexe num item da conta, que é a despesa primária. E a despesa financeira? E a receita? E a composição da receita tributária? E as isenções? Tem que abrir a conta toda, ler a conta toda e ver onde é que pode diminuir. Que vai precisar ajustar, não resta dúvida. A pergunta é: onde ajusta e onde é que o pau canta? Por enquanto, o pau vai cantar em cima dos mais fracos.

O relatório deste ano do Banco Mundial faz uma defesa muito interessante. Ele fez uma estimativa de quanto é que o Governo gasta com os mais pobres. E a conta, ainda modesta, diz que os 40% mais pobres só levam 17% da despesa. Portanto, dá pra fazer o ajuste sem mexer com os mais pobres, tá certo? O grande desafio é político. E como é que faz isso, mexendo com os de cima? Como é que tira de quem se acostumou a montar no Estado? Porque o discurso das nossas elites é muito interessante. Todos são liberais, mas todos dependem do Estado. O Brasil é um país desafiador.

Publicado originalmente no site Pragmatismo Político.

(*) Tania Bacelar é socióloga, economista e professora universitária aposentada.