O que quer Fernando Henrique Cardoso?

 Fernando Henrique Cardoso foi um sociólogo aplicado. Seguiu novo rumo desde que, candidato à presidência da República, em1994, pediu para que se esquecesse o que escreveu.

Por José Carlos Ruy*

Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso

Presidente da República por dois mandatos, entre 1995 a 2003, (foi ele que, por apego ao poder, propôs uma mudança na Constituição – aprovada de modo controverso – para permitir a reeleição do presidente da República), foi autor de algumas das grandes mazelas que afligem os brasileiros. Pioradas pelo governo golpista ultra-liberal de Michel Temer – ungido pelo golpe midiático, jurídico parlamentar de 2016, com apoio militante e inconteste de Fernando Henrique Cardoso.

O ex-presidente, campeão das privatizações, do desmonte do Estado e da constituição cidadã de 1988, deveria, agora, suplicar ao país: esqueçam o que fiz!

Ele publicou um artigo na imprensa, neste domingo (1º), cujo título imita uma frase clássica de Friedrich Engels: Civilização ou barbárie (a frase famosa que diz: Socialismo ou barbárie, é do final do século XIX).

No artigo deste domingo, o cardeal tucano faz uma longa avaliação da violência política recente, cujo clímax foi o assassinato da vereadora Marielle Franco. E, convenientemente, nada diz sobre os ataques à caravana de Luis Inácio Lula da Silva.

Os assassinos de Marielle, diz ele, não são nem de direita nem de esquerda – são bandidos. Mas se esquece que, desde a policialesca república francesa bonapartista dos tempos de Marx e Engels, desde a repressão assassina da Comuna de Paris (1871), passando pelo fascismo de Mussolini, pelo nazismo de Hitler e, no Brasil, pelas sanguinárias ditaduras do Estado Novo e de 1964, há uma explícita e permanente ligação entre a repressão política e o submundo criminoso. Que nutre a violenta e sangrenta repressão e não hesita em prender, torturar e assassinar opositores políticos.

O Brasil está dividido, constata ele – sem contar que a responsabilidade pelo racha cabe à direita neoliberal, da qual ele é um dos principais líderes, com papel de destaque para seu próprio partido (o PSDB) que, em 2014, não aceitou a derrota nas urnas e começou a pavimentar o caminho para o golpe de Estado que tirou do governo a presidenta eleita, Dilma Rousseff. E acentuou desde então o rancor contra a democracia, latente em muitos setores da sociedade brasileira, e alimentado por políticos de direita e pela mídia hegemônica que os apóia.

“O momento pede coesão em torno de valores”, escreveu ele. Que valores? – cabe indagar. Ele insinua uma resposta que inclui duas palavras: democracia e respeito à lei.

Justamente as duas palavras que os golpistas de 2016 jogaram no lixo, com o apoio explícito e entusiasmado do cardeal tucano e seus correligionários.

Democracia e legalidade não são palavras ocas. Significam a percepção do respeito e aos direitos de todos. Não pode haver democracia sem respeito ao direito de todos a uma vida estável, segura e digna. Que decorre do direito ao trabalho, ao emprego, à renda digna – e os brasileiros se encaminhavam nesse rumo, lentamente é certo, e enfrentando a forte oposição reacionária promovida pelos privilegiados de sempre, que se uniram à aventura golpista desde 2014, culminando no golpe de 2016. Cuja conseqüência foi o enorme aumento do desemprego, a paralisia da economia, o corte de recursos públicos para saúde, educação, moradia, etc. etc., promovido pelo governo golpista.

Num mundo sem perspectiva nem horizonte, a violência prospera, como a história e a prática diária demonstram. Num mundo distorcido e injusto como este, não há coesão, mas prevalece o hobesiano estado de todos contra todos, onde o homem é o lobo do homem.

Não é em torno de valores que a coesão social e política se dá – como quer FHC – mas em torno da perspectiva de vida melhor para todos.

E nunca em torno de uma ação governamental que – como a dele, quando foi presidente da República – favorece principalmente os ricos, os donos do dinheiro, as grandes empresas, os interesses estrangeiros. Os interesses do capital contra o trabalho. Não pode haver sinceridade na afirmação de FHC da necessidade de “políticas que reduzam ou eliminem esses males” como o desemprego e a pobreza, acentuados quando foi presidente da República.

Ele clama por “lideranças que tenham a capacidade de reunificar o País em torno de alguns objetivos comuns”. Diz ainda que em outubro o país não pode “se deixar levar pelo ódio”. E indaga: “o que será de nós como “comunidade nacional”? “Não pode haver comunidade nacional bem-sucedida sem crença na importância da convivência política civilizada”, afirma.

É uma descoberta surpreendente, e tardia, feita por um dos principais dirigentes do conservadorismo que acentuou a divisão entre os brasileiros justamente por não aceitar o protagonismo do Estado e do governo federal na promoção do desenvolvimento, do bem-estar social e da defesa e afirmação da soberania nacional.

Ele fala na necessidade da “recuperação da confiança na democracia” e no Estado de Direito. É outro pensamento tardio que não inspirou a ação de seus acólitos, desde pelo menos a crise do chamado “mensalão”, em 2005. A direita conservadora agiu, ao contrário, para dividir o país e insuflar o ódio político, que levou ao golpe de 2016 e à emergência de uma autoridade pública sem legitimidade, como agora FHC parece lamentar. “É urgente recuperar a autoridade pública. Mas autoridade derivada da legitimidade das urnas”.

Diz mais, quase como uma conclusão lamentável: “A ansiada renovação de conduta deve ter início na campanha e se traduzir num novo governo capaz de fazer o País recuperar a confiança no seu futuro”. Sob o risco do país “enveredar por descaminhos que, cedo ou tarde, nos levem a governos não democráticos, de direita ou de esquerda”.

Fernando Henrique Cardoso tem oscilado muito. Ora pregando soluções autoritárias, como no apoio ao golpe de 2016 e em defesa daquela ação antidemocrática. Ora, temeroso das conseqüências institucionais de ações que possam resultar em rupturas políticas maiores.

O que quer FHC? O respeito à lei e, desta vez, ao resultado das urnas? Quem é o líder que, em sua opinião, será capaz de unificar o país? Terá seu apoio, seja ele quem for? Apoiará uma saída progressista, à esquerda, preferência que parece ter o apoio majoritário dos brasileiros? Ou prega, sub-repticiamente, a saída de “centro” que seu partido, o PSDB, parece tentar construir?

Para ser explícito, o discurso atual de FHC é de apoio à candidatura de Geraldo Alckmin à presidência da República? Será o governador de São Paulo o nome capaz de, em sua douta opinião, unir os brasileiros? Em torno do programa e privatista e neoliberal reiteradamente rejeitado pelo eleitorado?

Não parece que Alckmin seja capaz dessa façanha, por maior que seja a esperança conservadora de FHC.

Quando Fernando Henrique Cardoso fala na necessidade de sintonia com a sociedade, a quem ele se refere, a que setores se dirige? Aos que, segundo a crença conservadora, “sabem votar”, com escolaridade considerada suficiente? Que país ele quer unir? O Brasil branco, com emprego, de “bem”? Ou o conjunto do país, que inclui mestiços e negros pobres das periferias?

Estas perguntas precisam de respostas, necessidade acentuada pela ofensiva conservadora crescente, Respostas que não virão de FHC, mas das urnas, dos votos que elegerem o próximo, ou a próxima, presidente da República, em outubro. A FHC e seus partidários caberá – na verdade, exige-se deles – respeitar a vontade popular.