STF tem responsabilidade constitucional sobre presunção de inocência

Em outubro de 2017 foi sancionada a Lei 13.491, que transferiu para a Justiça Militar da União o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados contra civis por militares, quando em exercício de atividade operacional estabelecida pelo Presidente ou o Ministro da Defesa.

Por Pietro Alarcón, no Justificando

justiça

Meses depois, o Decreto 9.288 de 2018 determinou a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro e, nesse contexto, membros do governo federal expuseram a “tese” de mandados de busca e apreensão coletivos, Mas recentemente deram a conhecer uma nova versão, os mandados de múltiplos alvos.

A esse quadro preocupante deve-se adicionar a discussão jurídica e política em torno à relativização da intensidade protetiva de um dos baluartes mais significativos da história dos direitos fundamentais e que constitui o vértice do processo penal, referimo-nos, obviamente, à presunção de inocência.

Os contornos do debate foram definidos logo após a decisão do HC 126292, Rel. Min. Teori Zavascki, julgamento de 17.02.2016, na qual o STF por maioria determinou que em caso de confirmação de sentença penal condenatória por tribunal de segundo grau de jurisdição,a execução provisória de acórdão, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio estampado no artigo 5º, inciso LVII da Constituição.

Já não é uma novidade que o governo federal instalado em 2016 surpreenda com uma agenda de cerceamento de direitos e garantias, tanto no terreno das liberdades públicas quanto nos direitos sociais.

Percebe-se a desvalorização da possibilidade de promover uma cultura de responsabilidade democrática. Entretanto, atingir a presunção de inocência é algo mais grave e delicado porque modifica a concepção do processo em área especialmente sensível, em cujo núcleo está o valor liberdade, instalando a era da culpabilidade no sistema punitivo.

Uma opção que constitui um golpe contra todo aquele e tudo aquilo que possa, em algum momento, se posicionar contra a arbitrariedade e que, precisamente por isso, é condenada pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Por outras palavras, o Estado deseja (e possui hoje no Brasil) a patente para, a partir da segunda instância, considerar culpado ao ser humano com independência de que não se esgotem as instâncias que fazem parte da estrutura do próprio Estado-juiz.

As justificativas expostas pelos que julgam necessária a relativização se concentram no que se considera um favor indevido à delinquência e à corrupção no Brasil.[1]

Ou seja, em lugar de estabelecer as medidas que podem superar as contradições sistêmicas que favorecem o crime organizado e a corrupção, entra-se na onda punitiva, numa fase da história na qual uma das prioridades para a reprodução de uma cultura em favor do grande capital consiste em inventar, identificar e punir inimigos e para tanto fomenta, porque precisa com urgência, um Direito Penal que sacrifique as garantias e direitos conquistados ao longo da história.

Onda punitiva e a mídia

A conjuntura midiática que alimenta essa visão nos apresenta uma versão da realidade na qual já não há mais diagnósticos jurídicos sobre o ponto, senão a necessidade de fechar uma etapa com o broche da punição como algo consensual e orientado pela procura do “bem e da justiça”.

Em perspectiva estratégica retirasse parte da capacidade transformadora do movimento popular porque a redução termina a mediano prazo por criminalizar a protesta. É claro que os mais otimistas dirão: Não toda, apenas a partir da segunda instância.

Assim, distanciados da reforma ao sistema repressivo empreendida no século XVIII pelas concepções Iluministas das revoluções burguesas, se normaliza a tese do “fato consumado” num país de juízes “neutros” no qual, como tantas vezes apontou Lênio Streck, não se construiu ainda uma cultura jurídica de respeito pelos direitos fundamentais e que hoje nivela por baixo a demanda pela igualdade de tratamento de todos perante o Judiciário.

Nesse quadro, a relativização da garantia da presunção de inocência não é o maior nem o menor dos males, senão um dos sintomas mais graves e agressivos da conjuntura.

E, por isso deve ser analisado com o crivo analítico das rupturas e retrocessos do processo de construção de uma prática histórico-progressiva de respeito pelos direitos e no marco da necessária acumulação de forças para transformações cada vez mais estruturais da sociedade.

Apenas para constar algo que, a julgar por opiniões que a diário escutamos muitos não conhecem, – e que se torna, portanto, imprescindível para avançar – registramos que no mês de maio de 2016 – a pouco mais de dois meses da decisão da Corte – o Partido Ecológico Nacional (PEN) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), protocolaram ações declaratórias de constitucionalidade, identificadas com os números 43 e 44.

O intuito era de que o STF confirmasse a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, estabelecido pela Lei 12.403, de 2011, que reza: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Dentre os argumentos que fundamentam os pedidos encontram-se, resumidamente, os seguintes:

a) a interpretação do texto normativo condiciona o início do cumprimento da pena de prisão ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória;

b) o novo artigo do CPP harmoniza o processo penal à Carta de 1988 a partir de uma interpretação razoável do princípio da presunção de inocência.

Há de se ressaltar que a Corte máxima indeferiu as liminares das ADECO 43 e 44 no julgamento de 5 de outubro de 2016.

Porque e para que relativizar a presunção? Compreender o direito, compreender a política
Lembra Simone Goyard-Fabre ao apreciar os princípios filosóficos do Direito Político moderno que a marca da Política está impressa com tanta força nas múltiplas figuras do mundo que o apolitismo se configura impossível. [2] Não é possível, nessa trilha, dissociar as duas variáveis – Direito e Política.

Porém, na relação intrínseca das duas o Direito não pode ser experimental nem teoricamente reduzido às relações de poder ou a uma espécie de forma de ser da Política.

Se assim fosse não haveria nem Teoria Geral nem Dogmática, bastando uma crítica ao exercício da Política para simultaneamente tecer uma crítica ao ordenamento ou à forma histórica que assume o Direito.

Leia também: A presunção de inocência, a dogmática jurídica e o Supremo Tribunal Federal

Prisão antecipada é ilegal, inconstitucional e perigosa

E a equação a fazer não é exatamente essa simplesmente porque a vinculação que permite o trânsito de uma etapa civilizatória a outra não se define pelas formas supraestruturais do Direito e da Política, senão pela ação coletiva dos seres humanos das quais as duas são resultado. Nesse campo, no roteiro entram em jogo tanto as crenças e convicções como as fatalidades, dramas e interesses dos atores sociais.

Por outras palavras, para além do exame do Direito e da Política, não pode haver dissociação cognitiva entre o Estado regulado pelo Direito, a Política como fórmula de atender expectativas públicas e os seres humanos que se pronunciam com manifestações concretas e socialmente postas sobre uma e outra, e nas quais se entremisturam escolhas entre o certo e o errado em tempo e espaço determinado.

Nesse sentido, há o Direito e o Político “postos” e “pressupostos”, adicionando o ingrediente “político” às considerações conhecidas de Eros Grau. [3]

Talvez isso seja suficiente para explicar que as conquistas em termos de direitos e liberdades são obtidas não através de fórmulas mágicas preconcebidas pelo Direito e pela Política, mas essencialmente, pelo desenlace positivo das contradições entre os seres humanos cujo pano de fundo é uma sociedade regularmente e ate nossa época dividida em classes e grupos sociais. Ou seja, se conquistas nas ruas.

Nas aberturas democráticas que venceram ao absolutismo, a sociedade institucionalizada gerou um Estado liberal com um certo caráter corporativo dos órgãos que exercem o poder através do político.

Esse caráter foi especialmente confirmado após o século XVIII, com o aperfeiçoamento das técnicas de representação popular aliadas à conformação dos partidos da burguesia que tomaram conta do Executivo e do Legislativo e apontaram com clareza o tipo de Judiciário do qual precisavam: um Judiciário aplicador da lei que emanava da Assembleia ou Parlamento e sem desnecessários exercícios de hermenêutica.

Era o Direito pautado pela supremacia do Código que, no entanto e simultaneamente, consagrou no artigo 9º da Declaração de Direitos do Homem a presunção de inocência: Tout homme étant présumé innocent jusqu’à ce qu’il ait été déclaré coupable, s’il est jugé indispensable de l’arrêter, toute rigueur qui ne serait pas nécessaire pour s’assurer de sa personne, doit être sévèrement réprimée par la Loi.

E bom lembrar que nesse percurso, a partir do começo do século XIX, há que destacar o Judiciário dos Estados Unidos que empreendeu, de forma inédita, a missão de conter os excessos no exercício do poder político do Legislativo, reinterpretando a cláusula do devido processo legal oriunda da Inglaterra no século XIII.

A Corte abandonou a visão estritamente processualista (procedural due process) para iniciar uma fase substantiva (substantive due process)de contenção dos atos do Congresso.

Razoabilidade dos atos do poder público
Siqueira Castro, em valioso e clássico estudo, retrata a entrada em cena do Judiciário nos Estados Unidos como árbitro autorizado e final das relações do governo com a sociedade civil e da maneira como a dialética do poder e as metafísicas questões do Direito Público encontraram uma autoridade dotada da prerrogativa de decidir.

Começou-se a falar em razoabilidade dos atos do poder público, e a cláusula do devido processo legal passou a ser um standart de justiça, associada à defesa das liberdades fundamentais. [4]

Se neste caso o Direito estreitou as hipóteses de arbítrio, nem sempre o resultado foi o mesmo. Aliás, isso não é o que ordinário acontece.

Os postulados liberais, colocados regularmente como regras do jogo na plataforma constitucional, são esquecidos quando o interesse de classe se torna determinante e orienta a conduta de manutenção do poder a qualquer custo. Isso não aconteceu apenas no Brasil há pouco menos de dois anos.

Vale a pena resenhar uma das lições históricas do domínio e predominância da Política, quando a presunção de inocência postulada na França foi abandonada para que fosse mantida a estrutura repressiva do Ancién Régime, retomada por Robespierre para punir inimigos que denunciavam uma revolução aristocrática dentro da revolução, um pacto entre burguesia e os restos da nobreza.

O caso de L. Desmoulins, o advogado que se opunha ao voto censitário e proclamava uma abertura do sufrágio que favoreceria lideranças destacadas do povo francês é muito conhecido porque guilhotinado sem direito a defesa ao igual que sua mulher Anne Lucile, acusada e condenada sem provas.

No caso, a relação entre Política, Direito e ação social aparecem operacionalizados numa tendência destrutiva do Direito pela Política, que longe de ser nesse caso a arte do governo em função do interesse público – como sempre deveria ser em sentido Aristotélico – sacrifica seres humanos identificados como inimigos do regime e para os quais não houve garantia que tivesse um mínimo valor.

Chegados a este ponto esclarecemos que não pretendemos fazer uma exposição sobre as escolas do Direito Penal para identificar os detalhes da presunção de inocência, entretanto interessante mencionar a concepção autoritária da Escola Técnico-Jurídica, que na visão conhecida de Arturo Rocco, a começos do século XX, postulou a pretensão punitiva do Estado como o centro da reflexão penal pretendendo retirar qualquer visão filosófica no caráter do delito e da pena.

Claramente para Rocco, fundador do nacionalismo e do partido fascista italiano, presunção de inocência não tinha vez nessa concepção do Direito.

Logo após os períodos de exceção que sustentaram o nazi-fascismo, os argumentos jurídicos que impuseram a presunção de inocência destacaram a superioridade da liberdade sobre o interesse repressivo e o poder político- punitivo que caracteriza o Estado.

Por esse atalho chega-se a ponto importante, consistente em que o interesse público não é realmente o punitivo, mas o da liberdade e de respeito por um processo justo, equilibrado e pautado por garantias fundamentais em favor da pessoa. Daí a falsidade da ideia de que, no campo penal, a liberdade da pessoa deve ser necessariamente sacrificada em função do interesse coletivo.

Contemporaneamente, não só a jurisprudência, mas a Ciência Jurídica, em desempenho do seu papel epistemológico, tem a obrigação de manter o compromisso com as formasmais elevadas de preservação da dignidade humana como fórmula histórico-conceitual matriz da liberdade e da igualdade.

Esse enredo histórico parece ser de extrema relevância no Brasil contemporâneo, contexto que ocasiona mais de um desalento porque quando se pensava numa vitória – ainda que fosse relativa – da razão e uma evolução ascendente dos conceitos de direitos humanos, liberdades públicas, direitos fundamentais, devido processo legal, parece pairar hoje o dilacerar da Ciência, o abalo das formas de proteção jurídicas civilizatórias que achávamos – talvez com certa ingenuidade -tão enraizadas socialmente que não admitiriam mais retrocesso, configurando-se um quadro angustiante de inseguranças.

E nesse contexto, quando é cada vez mais necessário um Judiciário ponderado e equilibrado, o Supremo Tribunal expõe fraturas e dúvidas.

E nas Funções Essenciais à justiça – mas perigosamente se alastrando por segmentos sociais – um panorama confuso no qual há os que entendem que a Operação Lava Jato pode utilizar qualquer tipo de mecanismo coercitivo, delações e modalidades de pressão ainda que sejam sacrificadas as garantias fundamentais em nome de derrotar a corrupção e acabar com a impunidade, numa reconstrução perigosa do Direito Penal, e aqueles que buscam a limitação dos poderes de delegados, procuradores e juízes de instâncias inferiores. Situação muito bem caracterizada, dentre outros, por André Singer, em coluna publicada no jornal Folha de São Paulo. [5]

Fragmentação
Por isso, se por um lado, mais do que nunca o papel da Ciência Jurídica tem de ser ressaltado, colocando um olhar crítico sobre uma realidade na qual o que parece ser incontroverso é a própria fragmentação dos valores jurídicos e o desconhecimento do conteúdo teleológico do texto constitucional, pelo outro, o que se pretenderia numa sociedade democrática é um Judiciário responsavelmente disposto à contenção de práticas estatais que superem barreiras edificadas por movimentos tão valiosos como o Constitucionalismo e o Internacionalismo.

Atribuir essa incumbência ao Judiciário será pedir demais no Estado contemporâneo? Isso o ratifica como o guardião das promessas constitucionais, nas importantes teses de Antoine Garapon? Ou o torna o órgão capaz de fazer valer o Direito sobre a Política, quando em situação de excepcionalidade democrática como no caso brasileiro?

O que resta claro é que se o Judiciário descumpre seu papel constitucional, não somente se perde o Direito, mas também a Política e a proteção humana.

Nesse compasso, o Judiciário não pode ser afirmar em pressupostos morais ou pseudomorais, posto que não é nem a instância que constrói nem que a pode medir a moral social, como tampouco na correlação de forças políticas.

O Judiciário deve procurar se afirmar na técnica de decisão que realize os direitos. Está vinculado a uma Constituição e às leis, que tem, obviamente, conteúdo axiológico e teleológico, e cujo conteúdo deve ser resgatado através de uma hermenêutica que prioriza o ser humano.

A própria existência de um Direito Público, cujo valor reside não na estrutura criada nos marcos do chamado Estado de Direito – posto que mecanismos institucionalizados meramente instrumentais – mas na ideia que temos de Constituição e direitos fundamentais, significa, singelamente, que algo devemos ter avançado desde os tempos de Robespierre.

No Estado de Direito contemporâneo, a Política não se reduz a simples relação de força praticada ao sabor das conjunturas que os poderes econômicos, patrimonialistas e midiáticos possam impor e demonstrar.

E por isso deve-se falar em Direito como “sistema” e “norma” que pauta o estofo da vida pública e reconhecer que o poder do Estado na Pólis é poder contido, restrito e limitado por princípios e regras. [6]

No ambiente polarizado – artificial ou realmente polarizado, pontuando que a apreciação sobre se um ou outro não é nosso tema – a flexibilização desse controle, especialmente quando oriundo do Judiciário, significa a quebra da trama lógica da disciplina que ordena a relação entre a pessoa e o Estado.

A pobreza dos argumentos contrários ao pleno exercício da presunção de inocência não pode nos fazer fugir da dupla exigência, também anunciada por Simone Goyard-Fabre, de ordem e movimento, que implica reconhecer a substância de cada instituto, liberdade, garantia ou direito, e concomitantemente seu caráter não definitivo.

Contudo, a não definitividade implica progresso e não reversão ou estagnação ou redução de intensidade protetiva. De ser assim o ser humano é que se empequenece diante da força do Estado.

A presunção de inocência e a responsabilidade constitucional do STF

Para um segmento significativo da Doutrina jurídica de continente a análise histórica crítica sobre o papel do Judiciário no marco da conformação das relações de poder dominantes na América Latina ainda não esta suficientemente desenvolvida.

Sem embargo resulta evidente que não há como desvincular a estruturação do Judiciário com a personalização da política, o patrimonialismo e a debilidade da democracia, é dizer, entrelaçada com o político, o econômico e o social.

Os nascentes Estados no século XIX adotaram com regularidade o esquema clássico liberal da separação de funções. Entretanto, a realidade de nações periféricas, com uma classe dominante de precária cultura republicana, para além dos caudilhos que reclamavam sua parcela de poder territorial, originou controles jurídicos de fachada.

Praticamente até o final do século os Executivos e os Legislativos como órgãos de representação popular eram obrigados a manter contatos mais próximos com várias camadas sociais, porém, em sentido contrário, o Judiciário desde o princípio foi conformado por representantes diretos das elites.

Nessas circunstâncias, como ressalta Correas Vázquez, o direito assumiu um sentido ideológico,[7] projetado desde as esferas do poder como um discurso prescritivo incompreensível para a maioria, ao passo que os juízes foram prontamente identificados como figuras acima da sociedade, ameaçadoras e autorizadas pelo Estado para exercer um poder que quase invisível se concretizava na execução das sentenças.

O resultado foi a natural exclusão em vastos setores da população do acesso ao Judiciário, a desconfiança nas decisões e a reprodução da hegemonia de um Direito plasmado nas regras legislativas.

Para Felipe Sáezos efeitos foram particularmente negativos em duas áreas: na proteção dos direitos fundamentais e sociais e na manutenção dos limites constitucionais definidos pelos demais órgãos de governo.

Sáez aponta que, mesmo com a incorporação do controle de constitucionalidade copiado no final do século XIX e começos do XX, a exemplo dos Estados Unidos:

(…) os Judiciários circunscreveram sua função constitucional à verificação meramente formal da correspondência dos atos do Executivo e Legislativo com os preceitos constitucionais, o que redundou numa postura defensiva, de procura de aceitação dos membros do Judiciário ás exigências dos demais poderes, o que permitiu a continuidade de uma ordem jurídica formal a pesar da crónica violação dos direitos.[8]

Deter-nos em pormenores dessa etapa extrapolaria a brevidade do presente artigo. No entanto, se é possível chamar a atenção sobre a permanência em vários segmentos do Judiciário contemporâneo da América Latina de uma visão aristocrática, sustentada numa cultura tradicional de privilégio e distinção social em lugar da ideia de juiz como um servidor público.

Na segunda metade do século XX os ventos da força normativa da Constituição, a ampliação do acesso ao Judiciário diante das necessidades sistémicas do capitalismo transnacional que iniciava sua caminhada à conquista de consumidores a escala universal, a renovação necessária após o balance crítico do papel dos juízes durante os tempos do nazi-fascismo conduziram a uma paulatina mudança do papel do Judiciário que repercutiu na América Latina.

Assim, no Cone Sul, após o período de aberta ditadura militar-civil, as leituras sobre a necessidade de constitucionalizar o ordenamento jurídico teve o efeito singular de que as Cortes Constitucionais – no Brasil é notório o papel crescente do STF – passaram a assumir atitudes de not self restraint perante as political questions.

De maneira que todos os cenários de atuação do Poder Público, bem como seus afazeres ordinários foram conduzidos a parâmetros susceptíveis de controle constitucional. A esse efeito deve-se adicionar a sobre interpretação da Constituição pela qual as Cortes podem adotar interpretações extensivas utilizando argumento a simili. [9]

No caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal passou a colmatar lacunas normativas e assumir o rol de defensor dos direitos abandonados pela inercia estatal, no que foi aplaudido por vastos setores da doutrina.

Mas, se esta era uma perspectiva válida e avalizada por muitos para tornar a Constituição algo vivo – em lugar de mero texto normativo ao sabor de interpretaçõesvariáveis e, em alguns casos, curtas e obtusas de membros do Executivo e do Legislativopromotores de projetos econômicos neoliberalizantes e distantes dos propósitos constitucionais -vale a pena indagar: em que momento começou a sensação de que o Judiciário brasileiro, em particular o STF, atravessava uma situação de fratura ou de‘crise de identidade” como órgão destinado constitucionalmente a decidir os graves dilemas jurídicos, impostos pela versátil e vertiginosa realidade contemporânea?

Provavelmente podem-se afirmar várias hipóteses, atrevemo-nos a tratar uma, sem que seja considera a razão exclusiva.

Partiremos de reconhecer que a conjuntura política impôs, em tempos de excepcionalidade, uma disjuntiva à Corte Constitucional: ou assume que faz parte da estrutura de poder estatal e se posiciona como órgão que acompanha, autoriza e concede aval à excepcionalidade como ciclo de reformulação do poder do capital, o que implica descontar do acumulado de direitos e garantias seu conteúdo constitucional histórico-libertário ou, por outro lado, se apresenta como baluarte e defensor das exigências das liberdades e direitos, se posicionando juridicamente em sentido de contenção das quebras ao rigor da constitucionalidade, invocando a supremacia das opções estabelecidas em 1988.

Subjaz às duas questões a independência do Supremo, que para além dos aspectos técnicos é indissociável de dois elementos.

O primeiro, um padrão de vinculação genética, porque oriunda do próprio sistema, instituído para a escolha de seus membros, com órgãos – Executivo e Legislativo, novamente – cuja filosofia está vinculada ao conceito de maioria política e relações de poder num Estado “oligárquico” de Direito precário.

O segundo, uma relação com fatores reais de poder social, dentre eles o midiático, capaz de construir ou destruir imagens de pessoas e instituições sob as novas formas da tirania da comunicação.

Essas indissociabilidades explicam duas questões que se tornaram comuns: a primeira, a tendência a identificar, levando em conta o perfil governamental, a Ministros “progressistas” ou “conservadores”, dos quais se espera uma certa decisão ancorada em pressupostos morais ou políticos; a segunda tem como pano de fundo aquilo que Warat identificava como a afetação do Direito pela “metástase informativa de transmodernidade”, uma estratégia comunicacional que além de retirar a consistência a temas como solidariedade, democracia, direitos humanos, postula quem são os heróis e os vilões, tanto na imprensa escrita como nos horários nobres da televisão.

O resultado é a trivialidade no exercício da função do judiciário, no qual junto a membros de uma magistratura corajosa – sim há juízes valentes e conscientes no país! – há juízes que adiantam votos na mídia impudicamente, numa tendência destrutiva das balizas que sustentam as garantias.

A situação torna a alguns juízes os super-heróis do momento e a outros desejosos de ser figuras públicas e produtores de notícia, tudo ao sabor, no caso brasileiro, da conjuntura da excepcionalidade.[10] Naturalmente, perdendo a juiz a prudência perde a grande chance de fazer jurisprudência.

Por isso o desafio do STF consiste em manter sua responsabilidade constitucional cuidando que a banalização que se pretende fazer das garantias constitucionais e os direitos sociais tenha limites com fundamento num exercício hermenêutico para a dignidade humana, limitando o arbítrio de tudo e qualquer agente estatal.

Nesse sentido, e referindo-nos às ADECO 43 e 44 parece-nos importante ressaltar alguns pontos com brevidade:

O Supremo deve levar em conta que a origem epistêmica da presunção de inocência supõe compreender porque para o Direito é mais justo absolver que condenar. Na Universidade de Barcelona, Jordi Fenoll lembrava com muita propriedade as razões históricas da presunção de inocência, observando como, ainda hoje,o réu ocupa sempre uma posição adversa no processo penal, resultado do receio de culpabilidade próprio de sociedades nas quais o individualismo rotinizado conduz paralelamente à construção do inimigo. O estereotipo do estrangeiro, o migrante, o estranho, ou simplesmente o pobre que desafia os roles comuns e preestabelecidos na normalidade não democrática, emergem com força para perigosamente conduzir a uma punição de consenso retroalimentada pelas maranhas do poder midiático e construída nos vários estratos da população. [11] O STF precisa compreender que o alcance punitivo do Estado precisa da contenção trazida pela presunção de inocência, sob pena de continuar a estigmatização dolorosa da desigualdade.

A Constituição Federal de 1988 consagra um modelo de proteção dos direitos fundamentais que obriga a uma interpretação pautada pela efetividade máxima do conteúdo jurídico de cada um desses direitos, bem como sua aplicabilidade imediata. Não está demais lembrar o valioso paragrafo primeiro do artigo 5º da Carta.
Por derradeiro, uma interpretação acertada da Constituição implica o reconhecimento de que os direitos fundamentais se encontram blindados diante das tentativas, que não são poucas – tanto nos Estados de não direito ou ditaduras quanto em momentos de gravíssima excepcionalidade – de diminuição de seu alcance protetivo. E essa proteção reforçada é oriunda não só da própria evolução do Constitucionalismo como processo político e jurídico de contenção da arbitrariedade estatal, mas também do internacionalismo como processo histórico-jurídico que a partir do final da Segunda Guerra determinou como valor inestimável para a orientação da interpretação/aplicação do Direito a dignidade da pessoa humana e seus desideratos.

O Constitucionalismo brasileiro encampou o acesso à justiça como um valor constitucional no artigo 5º, XXXV: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Dentre as várias questões relevantes nessa redação há duas que se referem diretamente ao papel do juiz ou do tribunal: a primeira, que não podem se furtar da obrigação de oportunamente julgar as causas que a eles chegam; a segunda, que a Constituição os trata como um corpo unificado materialmente, o que significa que não se pode parcelar e que, ainda que possua instâncias, na verdade cada uma delas faz parte do todo, esgotando-se a prestação jurisdicional quando se decida finalmente a causa não restando possibilidade de instância superior examinar a decisão da instância inferior. Tanto é assim que a prestação jurisdicional somente se esgota quando a decisão fica em firme, sem possibilidade de recurso .Por isso, Carmen Lucia Antunez Rocha postulou em outra oportunidade: “No presente, o processo forma-se e conforma-se aos parâmetros do Estado Democrático, aperfeiçoando-se a sua construção por um conjunto de princípios que se vinculam, se coordenam e se integram na elaboração constitucional asseguradora da jurisdição como direito fundamental. Assim, comparecem na raiz constitucional do direito à jurisdição a garantia do processo, neste incluídos os princípios do devido processo legal, o princípio da ampla defesa e o princípio do contraditório, dentre outros. A insegurança de qualquer destes princípios torna tíbio e vacilante o processo, comprometendo o direito constitucional à jurisdição (…) Não é por acaso que os regimes políticos antidemocráticos iniciam as suas artes e manhas políticas pela subtração ou pelo tolhimento do direito à jurisdição” [12]

Nessa toada, para efeitos de aplicação de uma técnica de decisão consoante com a democracia a Corte Constitucional deve considerar que o exercício de um direito fundamental por uma pessoa não precisa de nenhuma justificativa, senão que, pelo contrário, é o Estado quem terá sempre que justificar qualquer restrição ou limitação do direito,[13] e deverá fazê-lo pautado em razões jurídicas que não subvertam o conteúdo dos próprios postulados constitucionais. Nesse sentido, convêm lembrar que o grande Beccaria desde os tempos de construção da base ideológica do direito processual penal, no século XVIII, revelava seu desconforto contra a “quase prova, a semiprova, como se um homem pudesse ser semiinocente ou semireu, é dizer, semiimpune ou semiabsolvível (…) parece como se as leis ou o juiz tivessem interesse não é buscar a verdade, senão em provar o delito; como se não houvesse perigo maior de condenar a um inocente quando a probabilidade da inocência supera a do delito”. [14] E já no século XX, Roxin lembrava que inicialmente o chamado Direito Comum desenvolveu para o caso da insegurança na prova a pena por suspeita e a “absolutio ab instantia”de forma a impedir a necessária absolvição e que foi a luta do Iluminismo contra estas instituições a que preparou o terreno para o reconhecimento do “in dubio pro reo”. [15]

No Brasil, na Repercussão Geral no RE com Agravo 246 SP, o Min. T. Zavascki, resumiu a as decisões que indeferiram as liminares nas ADECO 43 e 44, expondo que o afirmado no julgamento do HC 126.292 , “ foi que a presunção de inocência, encampada pelo art. 5º, LVII, é uma garantia de sentido processualmente dinâmico, cuja intensidade deve ser avaliada segundo o âmbito de impugnação próprio a cada etapa recursal, em especial quando tomadas em consideração as características próprias da participação dos Tribunais Superiores na formação da culpa, que são sobretudo duas: (a) a impossibilidade da revisão de fatos e provas; e (b) a possibilidade da tutela de constrangimentos ilegais por outros meios processuais mais eficazes, nomeadamente mediante habeas corpus.”. Embora a Corte explicite o habeas corpus para tutelar os constrangimentos ilegais, a verdade é que não há como justificar a redução da intensidade da garantia da presunção simplesmente porque resulta incontroverso como premissa geral que a liberdade autorizada pelo Tribunal logo após do constrangimento da prisão na segunda instância não repara o dano ocasionado.

Veja-se ainda que, os atos normativos emanados do Congresso desfrutam de presunção de constitucionalidade. Isso significa que devem ser aplicados até que o STF não declare sua inconstitucionalidade. Não havendo declaração de inconstitucionalidade do artigo 283 do CPP é de obrigatória aplicação por juízes e tribunais. O que normalmente acontece hoje no Brasil é que como advertia há séculos Beccaria, há semiinocentes ou semireus, num contexto em que as instâncias são entendidas como fragmentos e, sendo assim, o Judiciário não conclui a formulação de juízo definitivo com relação a fatos, circunstancias e textos normativos aplicáveis aos casos que lhe foram apresentados.

Uma decisão na contramão da Constituição, ou seja, confirmando-se a relativização da presunção de inocência, o STF ratificaria que entra simultaneamente na contramão da história das garantias democráticas que amparam o cidadão diante do Estado.

A lembrança de Zaffaroni resulta inevitável: a função do Direito Penal, hoje e sempre, é conter o poder punitivo do Estado. O poder punitivo não é seletivo do poder jurídico, é sim um fato político (…) O judiciário é imprescindível para isso. A contenção deve ser feita pelos juízes. Sem limites, saímos do estado de Direito e caímos em um Estado policial (…).

Expõe Paulo Arantes, com certo desalento, que ao pretender aprisionar a Política na gaiola do Direito, surgiu em muitos a imagem de que na sociedade, afinal pacificada, até mesmo as contradições, a herança do déficit democrático e as visões patrimonialistas teriam sido afastadas como condicionadoras da vida jurídica social e não teriam interferência no Judiciário contemporâneo, pois sujeito a força suprema e normativa do texto constitucional.

Na verdade, esse poder punitivo quer se impor como uma tremenda máquina de confiscar conflitos e fabricar inimigos. [16]

Essa onda disciplinadora não se restringe à esfera penal, senão que se se estende ao mundo do trabalho, à previdência, à austeridade fiscal, se revela na ação que militariza a vida social. Hoje o pano de fundo é agravado com o assassinato da vereadora Marielle Franco, cuja memoria nos lembra que direitos humanos, e dentre eles a presunção de inocência, não admitem duvidas ou dilações.

Nesse quadro, o STF tem a responsabilidade institucional e constitucional de reestabelecer a hegemonia dos Direitos e das garantias ratificando a plenitude da presunção de inocência e retirando o ordenamento a possibilidade de prisão em segunda instância.

[1]A. Magalhaes Gomes Filho. Significados da Presunção de Inocência. In Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais, Visão Luso-Brasileira. José de Faria Costa e M.A. Marques da Silva. (Coordenação). São Paulo: Quartier Latin. 2006. P. 313.

[2]Goyard-Fabre, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno. Trad. Irene Paternot. São Paulo: Martins Fontes. 2002. P. 1.

[3]Eros Roberto Grau. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros. 2011.

[4]Carlos Roberto de Siqueira Castro. O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil. RJ: Forense. 1989. Pp. 57 e seguintes.

[5]André Singer. Um verbete chamado STF. In Folha de São Paulo. 24.03.2018. p. 2.

[6]Idem. Pp. 2-3

[7]Oscar Correas Vázquez. Teoría del Derecho. México: Fontanara. 2000.

[8] Felipe Sáez. La Naturaleza de las reformas judiciales en América Latina: algunas consideraciones estratégicas In Reforma judicial en América Latina: una tarea inconclusa. Bogotá. Corporación excelencia en la Justicia. 1999. Pp. 70-71.

[9] Sobre o ponto veja-se a obra de Riccardo Guastini Estudios de Teoria Constitucional; México: Fontanara. 2003. Pp. 153 e seguintes.

[10] Veja-se a L. A. Warat. Por quien cantan las sirenas? Florianópolis: UNOESC/CPGD-UFSC. Pp. 153-154.

[11]Jordi Nieva Fenoll. La razón de ser de la presunción de inocencia. In Revista para el Análisis del Derecho. Nº1. Barcelona: 2016. Pp. 3-23.

[12] Cármen Lúcia Antunes Rocha. O Direito Constitucional à Jurisdição InAs garantias do cidadão na Justiça. Coordenação do Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Pp. 38-43.

[13] Nesse sentido, veja-se a E. Bacigalupo. Justicia Penal y Derechos Fundamentales. Madrid/Barcelona: Marcial Pons. 2002. P. 243. E Grimm, Die Zukunft der Verfassung., 1991. Pp. 67 e seguintes.

[14]Beccaria. Dei Delitti e delle pene. 1764. D.G. Pisapia. 1973. XIII.

[15]Roxin, Sobre la “pena de sospecha” y “absolución de instancia”

[16]Paulo Arantes. Entre os destroços do presente. Entrevista de Aray Nabuco e Lilian Primi. Revista Caros Amigos. Fevereiro de 2015.