A sombra do FMI paira novamente sobre a América Latina

Nesta terça-feira (8), através de uma mensagem em rede nacional de televisão, o presidente argentino Maurício Macri anunciou o regresso de seu país à mesa de negociações do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Por Lucía Converti y Sergio Martín Carrillo

Maurício Macri - Efe

Sua retórica de “voltar ao mundo”, que anunciou em seu projeto eleitoral, finalmente despencou. Apensar da humilhação frente aos fundos abutres e as boas palavras, “a chuva de investimentos” nunca chegou e a seca de financiamento se agudizou. Os argentinos vivem um flash back e voltam a lembrar dos temores desterrados graças às políticas econômicas aplicadas pelos governos precedentes a Macri. O FMI volta à América Latina, ainda que na verdade, nunca tenha saído totalmente.

América Latina, o FMI e a insistência em um casamento fracassado

Depois da entrada em vigor do FMI em 1945, a região latino-americana entrou massivamente no organismo. Só dois países ficaram foram retardatários: o Haití, que entrou em 1953 e a Argentina, que entrou em 1956. Desde este período, as relações entre os diferentes países e o organismo com sede em Washington passou por diferentes etapas, onde o número de acordos, o montante de financiamentos, e as condições quanto às reformas foram se modificando. Da mesma forma que as relações com uns e outros países variou ao longo dos anos e, apesar de que na primeira década do século 21 a presença do FMI em alguns países foi reduzida, o certo é que nunca desapareceu por completo da região.

Como é possível ver na primeira tabela, os destinatários dos recursos variaram significativamente ao longo dos anos, e alcançou o ápice entre 1989 e 2002. Depois, os desembolsos externos foram diminuindo, principalmente devido à mudança da orientação da política econômica de boa parte dos países da América do Sul, sendo o último período (2008 – 2015) dominado por pequenos países do Caribe.

Porém, e para deixar claro que a presença do FMI foi contínua, é necessário destacar que, em função dos dados de Nemiña e Larralde (2018), o Fundo Monetário Internacional aprovou créditos entre 2009 e 2015 na região por uma cifra recorde de 342,987 milhões de dólares, sendo esta cifra dirigida quase em sua totalidade a dois países tradicionalmente vinculados às políticas de Washington: México e Colômbia. Nestes dois países se acumularam 98% dos compromissos deste último período, o que agora engloba também a Argentina.


Fonte: Nemiña, P. y Larralde, J. (2018). Etapas históricas da relação entre o FMI e a América Latina (1944-2015)

O principal fator que faz com que a relação entre o FMI e a América Latina seja estreita – em termos históricos – é a restrição externa à que recorrentemente se encontram submetidas as economias latino-americanas. A chamada “divisão internacional do trabalho” situou a região na periferia da economia do mundo, especializada em exportação de matérias primas e importação de produtos elaborados. Devido à deterioração dos termos de intercâmbio para os países exportadores de matérias primas, em longo prazo se produzem crises na balança de pagamentos, com as quais se obriga a região a buscar financiamento externo. Aí as opções são várias, entretanto, desde a segunda metade do século 20, o papel desempenhado pelo FMI tem sido transcendental e os acordos subscritos entre FMI e os países da região foram regulares – ainda que diferenciados em função das etapas de orientação econômica da região – como podemos ver na segunda tabela.

Fonte: Nemiña, P. y Larralde, J. (2018). Etapas históricas da relação entre o FMI e a América Latina (1944-2015)
Em termos de política econômica, o mais relevante é que o financiamento outorgado pelo FMI vem acompanhado de umas condições marcadas pelo próprio organismo. Desde a década de 70, estas condições reforçam o papel do mercado e do setor privado frente às medicas de caráter contracíclico impulsionadas pelo setor público. O fracasso contínuo destas, no entanto, não tem feito mudar a orientação das exigências do Fundo, e continuam sendo aplicadas quando um país (como agora a Argentina) solicita financiamento. 

Se o interesse [do FMI] pode ser considerado inferior ao de outras fontes de financiamento, as condições políticas, econômicas e sociais são as que realmente hipotecam as capacidades futuras para fazer frente ao cumprimento das obrigações e dão acesso livre à implementação do poder econômico do setor privado (privatização dos sistemas de previdência, privatização da educação e da saúde, reformas trabalhistas que buscam baratear as forças de trabalho, redução da presença estatal nos setores econômicos estratégicos).

O reencontro (traumático) do FMI com a Argentina

Segundo Macri, o pedido desta semana para iniciar as negociações com o FMI busca “equilibrar o desastre que nos deixaram em nossas contas públicas”. Segundo os dados, o desastre voltou com ele. Os dados do próprio Ministério da Fazenda da Argentina mostram que a dívida externa bruta do setor público não financeiro e banco central, entre 2003 e 2015, aumentou 8%. Em contrates, só em 2016 (último dado oficial), o aumento foi de 21%. Esta mesma fonte mostra que o governo aumento em 62% sua dívida externa entre o final de 2015 e final de 2017, enquanto entre 2006 e 2015, esta dívida aumento 9% [1].

Descartado o argumento da “pesada herança” com seus próprios números, é necessário mencionar a dinâmica que justifica – segundo o governo – voltar a pedir um empréstimo ao FMI. Com o início da atual gestão, a regulação das finanças passou a ser história. A bicicleta financeira voltou com todo seu esplendor e com muitos dólares emprestados para repartir.

O ano de 2018 marcou um freio à possibilidade de endividamento externo irrestrito. Tanto a pressão internacional sobre a acumulação de dívida do governo, como o aumento da taxa de interesses da FED, marcou uma parada. Entretanto, o ritmo de fuga de capitais não cessou, e a liquidação do setor agropecuário foi freada prevendo e aumentando a possiblidade de desvalorização do peso. Aquela minoria com muita capacidade de investimentos financeiros viu a possibilidade de um aumento instantâneo de suas poupanças e começou a vender as Letras do Tesouro para comprar dólares, aumentando fortemente a demanda de divisas e, portanto, o preço do dólar.

Dada esta situação, o governo decidiu intervir aumentando a taxa de interesse das Letras do Tesouro a 40% e gerando assim um incentivo extraordinário para voltar a investir em pesos e introduzir algumas regulações. No entanto, a chance de desvalorização permaneceu latente e o câmbio abriu esta semana com uma nova desvalorização alta.

As reservas não são poucas e o risco de colapso não está tão perto. No entanto, diante desta situação, a decisão não foi aumentar as regulações e cortar a bicicleta financeira se não a esperada [2] volta ao FMI, reafirmando a intenção de produzir o conhecido ciclo de endividamento com uma perspectiva certa e já demonstrada de aumento da taxa de juros internacional que prevê a repetição da história [3].

Como foi mencionado anteriormente, o acesso a este crédito se diferencia do resto do endividamento externo pelas condições que são colocadas pelo organismo para outorga-lo. Por esta mesma razão, e dado o fracasso da aplicação das políticas econômicas exigidas pelo FMI em anos anteriores, é que vários governos da região e do mundo decidiram cancelar sua dívida com o organismo e aplicar políticas próprias para solucionar a crise econômica existente.

Até o momento não foram anunciados os acordos que condicionaram o crédito de 30 bilhões de dólares pedidos por Macri, mas é possível fazer algumas especulações com o último informe sobre o país apresentado por este organismo diante da situação econômica argentina [4]:

Reduzir o déficit fiscal mais rápido que o programado;

Fazê-lo reduzindo o gasto público, particularmente em salários aposentadorias e transferências sociais;

Aplicar uma âncora fiscal e mecanismos de aplicação mais rigorosos;

Eliminar impostos “distorcedores” em uma reforma tributária que sacrifique rendimentos fiscais às custas de um suposto crescimento maior no futuro.
 

“Apontaram que o aumento da produtividade e o crescimento a longo prazo requereria uma redução mais acelerada das tarifas de importação, a eliminação da maioria das licenças de importação, a eliminação de barreiras a investimentos e à entrada de empresas e medidas para impulsionar a competitividade interna” [5].

Ouviu-se dizer que o FMI mudou porque as recomendações para este novo empréstimo não serão as mesmas que levaram a Argentina e outros países ao colapso. Entretanto, reproduzimos aqui a continuação de um fragmento de um informe emitido em maio de 2001 [6], sete meses antes da grande crise que sacudiu a Argentina, e que resume tudo: “estas inciativas incluem os passos recentes para reverter a deterioração no cumprimento tributário, racionalizar e reformar a administração pública, abordar a dissolução do sistema de segurança social, assim como liberar o regime comercial. Um progresso rápido e sustentado nestas áreas será a chave para um êxito duradouro do programa”.

Notas

1 – https://www.minhacienda.gob.ar/datos/ Sector externo.

2 – http://www.celag.org/cambiemos-o-volvamos-la-politica-de-endeudamiento-externo-en-argentina-por-lucia-converti/

3 – http://www.celag.org/el-impacto-de-la-subida-de-la-tasa-de-interes-estadounidense-en-una-region-endeudada/

4 – http://www.imf.org/en/News/Articles/2017/12/29/pr17524-imf-executive-board-concludes-2017-article-iv-consultation-with-argentina#_ftn1

5 – Tradução textual do informe mencionado

6 – http://www.imf.org/en/News/Articles/2015/09/29/18/03/nb0144