A Venezuela é palco de uma batalha global decisiva, diz especialista

No último domingo o presidente Nicolás Maduro foi reeleito na Venezuela com 68% dos votos em uma eleição respaldada por 46% da população num país onde o voto não é obrigatório. Imediatamente alguns países, entre eles os EUA, trataram de tentar deslegitimar o processo e não reconhecer a reeleição. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Igor Fuser, isso se dá porque a Venezuela é o palco de uma batalha que toma dimensões globais.

Por Mariana Serafini

Nicolás Maduro e Xi Jinping - Divulgação

Além dos Estados Unidos, os países membro do Grupo de Lima e alguns Estados do G20 (que reúne as 20 maiores economias do mundo) também não reconheceram o resultado, alegando baixa participação eleitoral. Vale destacar então, o grau de participação em alguns destes mesmos Estados: Donald Trump foi eleito com 46% dos votos em eleições que tiveram 54% de participação popular; na França de Emmanuel Macron, apenas 42% dos franceses foram votar, destes, 32% escolheram o novo presidente; já o chileno recém eleito Sebastián Piñera contou com 49% de expressão popular e 55% de votos; enquanto o colombiano Juan Manuel Santos foi eleito com 50,9% dos votos num processo que teve 47% de participação dos colombianos. Ou seja, a eleição na Venezuela não deve em nada aos demais países.

Outro argumento foi a ausência de candidatos da direita. Essa foi uma estratégia dos opositores que não tiveram capacidade de construir novas lideranças depois que tiveram dirigentes políticos condenados pela justiça venezuelana. O fato é que a Venezuela respondeu ao chamado de Maduro e decidiu pela continuidade da revolução bolivariana. A batalha agora entra em um novo capítulo.


Igor Fuser é professor de Relações Internacionais da UFABC 
 

Para entender este novo período da política venezuelana, o Vermelho conversou com o professor Igor Fuser. Ele esclarece quais são os desafios do próximo mandato de Maduro e o papel que a Venezuela terá que desempenhar num mundo onde os conflitos de grandes potências estão a cada dia mais acirrados.

Confira a entrevista na íntegra:

O que representa esta vitória de Maduro para o campo progressista no continente?

A vitória de Maduro na Venezuela foi uma proeza extraordinária, uma vitória importantíssima, reconhecida inclusive por analistas do lado oposto. O resultado das eleições na Venezuela abre novas perceptivas de continuidade e aprofundamento da revolução bolivariana e do processo de transformações em curso no país e em toda a América Latina. Essa vitória mostra que a direita pode ser derrotada, que o avanço conservador pode ser barrado e revertido. É um resultado eleitoral que expõe também a fragilidade do outro lado. A estratégia da oposição venezuelana fracassou completamente. É uma oposição de horizontes limitados, de base social limitada e cometeu seu erro fatal ao obedecer as diretrizes de Washington que prioriza opções violentas. Esta política estupida levou o campo direitista ao desastre naquele país.

Quais serão os desafios internos de Maduro diante de uma oposição tão dividida, mas ao mesmo tempo empenhada em desestabilizá-lo?

O grande desafio de Nicolás Maduro é apresentar uma solução eficaz, convincente e drástica para a gravíssima crise econômica que vive a Venezuela. Isso é possível agora que ele, como vencedor das eleições, tem pela frente num novo mandato. Tem, portanto, sua legitimidade confirmada pelas urnas e a possibilidade de tomar medidas econômicas sem a pressão do ambiente pré-eleitoral. Ou seja, é possível tomar medidas econômicas sem a necessidade agradar o eleitorado e sem o risco de ser prejudicado pelo efeito de curto prazo de medidas econômicas.


Manifestação em apoio à candidatura de Maduro na semana que antecedeu as eleições 


O futuro da Venezuela depende que nos próximos meses se apresente uma perspectiva efetiva de enfrentamento da hiperinflação, da escassez e do descontrole cambial. A grande batalha que está sendo travada agora é econômica, justamente por isso os EUA estão endurecendo o assédio econômico. A oposição oligárquica direitista venezuelana e o imperialismo estadunidense vão fazer de tudo para aprofundar a crise levando o país ao colapso, na expectativa de que uma situação de derrocada econômica abra o caminho para a derrubada do governo. A batalha vai ser travada no terreno econômico.

Com relação à reação dos EUA – que não reconheceu o resultado e aplicou novas sanções – há um risco real de golpe?

Maduro saiu claramente fortalecido das eleições, conforme admitem até comentaristas do campo opositor. Neste cenário não parece muito provável um golpe interno, o chavismo mostrou nas urnas e tem mostrado ao longo do tempo um alto grau de coesão. As tentativas de provocar um racha nas Forças Armadas até agora fracassaram completamente. Foram poucos os casos de dissidências militares, e no conjunto parece que as Forças armadas estão claramente dando respaldo ao governo venezuelano.

Aos EUA o que resta é endurecer as sanções, tentar provocar um isolamento politico internacional do governo venezuelano, mas mesmo com isso tem tido dificuldades. Nesta segunda-feira (21), houve reunião do G20 e apenas 6 países apoiaram as sanções contra o governo venezuelano.

Mesmo governos que têm adotado posturas subservientes, como é o caso do golpista Michel Temer no Brasil, não aprovou as sanções dando como pretexto uma questão constitucional brasileira que diz que o Brasil só pode adotar sansões contra outros países se isso for uma decisão do Conselho de Segurança da ONU, o que obviamente não vai acontecer porque nem a Rússia, nem a China vão permitir. Então a aposta dos EUA está em endurecer o bloqueio financeiro e o assédio econômico na expectativa que desta forma se produza um colapso na economia venezuelana, levando ao desgoverno, ao caos e a uma eventual derrubada de Maduro.

Como o senhor avalia as possibilidades de governabilidade de Maduro diante de um bloco de direita no continente?

O isolamento internacional da Venezuela é bastante relativo, o Grupo de Lima – formado por governos conservadores e pró-Estados Unidos não corresponde ao conjunto dos Estados latino-americanos. Países como a Bolívia, a Nicarágua, El Salvador, Uruguai estão ao lado da Venezuela. Países também do Caribe ou tem uma posição de solidariedade, ou uma posição independente, sem aderir ao bloco que os EUA estão tentando formar.

A Venezuela irá compensar a perda de alguns aliados importantes na América do Sul, como o Brasil, a Argentina e em certa medida o Equador, estreitando suas relações com outros países independentes dos Estados Unidos, especialmente a China e a Rússia que já são há muito tempo os principais aliados do governo venezuelano; além de outros países do Sul como a África do Sul, o Sudeste da Ásia, Índia…


Os países do Grupo de Lima não reconheceram o resultado eleitoral 
 

Então não se pode dizer que o governo da Venezuela esteja isolado internacionalmente. O fundamental é que não está isolado do povo, há uma parcela significativa da população muito solidária com o governo e lutando contra o campo direitista, reacionário e golpista que tenta reverter a revolução bolivariana. Esta parcela da população está enfrentando a crise com bravura, generosidade e altíssimo grau de consciência política e esse é o grande trunfo da Revolução Bolivariana e do governo Maduro neste período tão difícil.

Uma das tentativas da oposição agora é deslegitimar o resultado. Como o senhor avalia o sistema eleitoral venezuelano?

As tentativas de deslegitimar o resultado das eleições venezuelanas são totalmente inconsistentes, um sinal disso é que não há, até agora, uma única denúncia consistente de fraude embasada em elementos concretos. Há simplesmente uma denúncia genérica feita de forma irresponsável, nem mesmo a mídia empresarial engajada em desestabilizar o governo venezuelano tem dado espaço para este discurso de uma suposta fraude eleitoral.

O elemento que se busca, que tem sido mais utilizado neste sentido é ausência de políticos importantes da oposição, mas isso também é algo bastante frágil. Um destes políticos que supostamente em outra circunstância seria candidato é Leopoldo López, que está preso desde 2014 e cumpre sua pena em regime domiciliar. Ele foi condenado porque convocou um levante contra o governo legítimo da Venezuela, conclamou seus partidários a ocuparem as ruas e partirem para uma campanha de contestação violenta ao governo, com o objetivo de levar o país ao caos e precipitar um golpe contra Maduro. Esta campanha golpista e violenta liderada por Leopoldo consistiu na depredação de prédios públicos e incêndios de instalações do Estado. Para se ter uma ideia, a sede do Ministério Público venezuelano foi incendiada, foram atacadas repartições públicas, creches, escolas, postos de saúde, delegacias de polícia; foram queimados ônibus, foram disparados tiros contra policiais, contra partidários do governo, isso gerou um alto numero de mortes naquele período… Por isso Leopoldo López foi condenado. Porque trata-se de um criminoso que seria condenado pelo que fez em qualquer lugar do mundo.

Um outro nome que ficou fora das eleições é Henrique Capriles que já foi candidato presidencial e derrotado duas vezes. Ele está cassado, impedido de exercer suas atividades politicas por ordens judiciais, devido a uma série de irregularidades cometidas quando era governador do estado de Miranda. Uma dessas irregularidades, que é crime de acordo com as leis venezuelanas, foi ter recebido dinheiro da embaixada da Polônia para sua campanha eleitoral. Na verdade, foi os EUA transferido recursos às mãos de Capriles através da embaixada da Polônia que obviamente não teria maiores motivos para se envolver na política interna da Venezuela. Curiosamente, o presidente dos EUA está tendo grandes problemas por ser acusado deste mesmo delito, ele teria, supostamente, recebido ajuda da Rússia, nas eleições estadunidenses. Portanto não se trata de nenhuma extravagância venezuelana.

De qualquer maneira, nem Leopoldo López, nem Capriles contam com um grau alto de prestígio junto à população, nem sequer junto aos opositores.

A Venezuela possui um sistema de votação extremamente eficaz, com mecanismos de proteção contra fraudes que são exemplo no mundo inteiro. O voto na Venezuela acontece duas vezes, a pessoa vota na urna eletrônica e em seguida recebe um papelzinho com a expressão da sua escolha para ser depositado numa urna física, fora isso há um comprovante físico do voto eletrônico que pode ser conferido em caso de dúvidas. Além disso, uma parte desses votos em papel são conferidos para fins de amostragem do voto eleitoral. É um sistema praticamente blindado contra a fraude.

Nestas eleições, a Justiça Eleitoral determinou a verificação de 100% das urnas, então é praticamente impossível que se encontre alguma diferença em relação ao resultado anunciado. Essa questão de irregularidade eleitoral é totalmente frágil. A própria oposição já está abandonando este discurso, os países que são contra a Venezuela também têm muita dificuldade em explicar porquê, afinal de contas, não reconhecem o resultado já que foi uma eleição realizada dentro das determinações constitucionais e nas quais não se verificou nenhum tipo de irregularidade.

A posição da China de respaldo a Maduro pode ser uma válvula para o desenvolvimento da revolução bolivariana?

O apoio da China tem se mostrado decisivo para que a Venezuela possa resistir ao assédio fortíssimo que tem sido praticado pelos EUA. A China, pouco a pouco, tem substituído os EUA como importador do petróleo venezuelano. Os EUA ainda são o maior comprador, mas a China está em segundo lugar e quase se igualando no volume de importações. Além disso, a China tem ajudado financeiramente a Venezuela com empréstimos e também tem investido na economia venezuelana com a instalação de indústrias e mais recentemente tem comprado em grande quantidade esses bônus do Petro.

Nesta segunda-feira (21), a China se manifestou em defesa do reconhecimento da vitória eleitoral de Maduro e criticou os países que estão contestando essas eleições. Além disso, a China tem adotado uma postura mais assertiva no cenário internacional porque tem plena consciência da emaça que representa pro mundo a política agressiva dos EUA – que busca cada vez mais por meios militares manter sua posição de hegemonia. Neste sentido, a China está comprometida com o projeto de um mundo multipolar que não seja dominado por nenhuma potência e está muito claro que uma batalha decisiva de dimensões globais está sendo travada na Venezuela.

A Venezuela, caso consiga resistir ao assédio do imperialismo estadunidense, pode se tornar o túmulo da hegemonia global dos Estados Unidos. A China está consciente disso, a Rússia também e isso confere uma dimensão geopolítica ao conflito venezuelano que poderá favorecer muito a sobrevivência da revolução e viabilizar a recuperação da Venezuela e enfim criar perspectivas bastante favoráveis ao Maduro no seu segundo mandato presidencial.

A criptomoeda Petro pode se consolidar como uma saída econômica a médio prazo?

Sim, a criação do Petro, essa moeda virtual lastreada no petróleo venezuelano, se mostrou uma alternativa muito inteligente, original e que tem grandes chances de ter sucesso e driblar o cerco financeiro que a Venezuela tem sofrido a partir do assédio e do bloqueio econômico dos EUA.
Através do Petro é possível o país escapar da armadilha do dólar e ter condições de estabelecer vínculos financeiros com o resto do mundo fora do alcance da perseguição movida a partir de Washington. A criação do Petro também pode ter um papel muito importante na estabilização monetária do país.


Nicolás Maduro anunciou o Petro no final do ano passado e desde então tem sido um sucesso de vendas
 

Esta moeda poderá ser utilizada como um mecanismo antiinflacionário que permita o governo venezuelano recuperar o controle sobre o câmbio. Ao utilizar o petro não apenas nas movimentações externas, mas também de uma forma crescente como valor sólido como referência monetária interna. Isso é possível na medida em que cada vez mais contratos internos sejam estabelecidos em petro. Fala-se muito em utilizar o Plano Real brasileiro como uma referência em lugar da dolarização que seria desastrosa, mas o petro articulado a uma política antiinflacionária vai abrir uma perspectiva de estabilização doméstica venezuelana e criar um horizonte de superação da crise.

Em curto prazo, pode reverter expectativas, criar um clima psicológico favorável que seja revertido em apoio político ao governo, em blindagem do sistema politico venezuelano contra novas investidas golpistas e alicerce para um projeto estratégico de longo prazo, de reestruturação da economia venezuelana no sentido de fortalecimento da sua capacidade produtiva e no impulso ao desenvolvimento do país que é o que Chávez pretendia desde o início e infelizmente não foi capaz de fazer.