Criminalizar a política visa impedir soberania do voto, dizem juristas
Em encontro em São Paulo promovido pelo escritório Aragão e Ferraro Advogados e o Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo, advogados, professores e juristas de diversas áreas analisaram as questões jurisprudenciais que cercam o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Por Dayane Santos
Publicado 29/06/2018 10:42
Sob o tema “Capacidade Eleitoral Passiva, Lei da Ficha Limpa e a Vontade Popular”, a maioria dos operadores do jurídicos presentes no evento consideraram que o ambiente é de um estado de exceção, apesar da Constituição artificialmente ainda estar em vigência. Mas não há qualquer segurança jurídica ou previsibilidade.
“Esse é um processo profundamente complicado porque não temos previsibilidade legal ou constitucional. Essa batalha se dá num campo sem regras e sem previsibilidade jurídica porque não estamos num Estado de Direito, portanto é um juízo de exceção que age fora de regramento geral”, afirmou a advogada de Lula, Valeska Martins.
O professor de Direito Constitucional da PUC-SP, Pedro Serrano, disse que há uma crise das constituições em todo o mundo, acompanhada de um populismo de extrema direita.
“Só que ele [populismo de direita] não se apresenta como formador de ditaduras ou de estados de exceção. Ele se realiza por mecanismos fraudulentos de medidas de exceção. Tem uma roupagem democrática, mas com conteúdo tirânico”, explicou o jurista.
Serrano observa uma tendência recorrente na história em momentos em que se instaura um paradigma autoritário e suspende dispositivos constitucionais. “Isso sempre se dá por um discurso anglo-saxônico do direito”, aponta o professor, citando a medida de Campos Sales, então ministro da Justiça na primeira Constituição da República, que ao suspender mecanismos democráticos, solta um decreto em que dizia que a Constituição em sua vagâncias, ou seja, em situações de conflitos sem previsão legal, deveria ser interpretada segundo o direito anglo-saxão, basicamente a legislação norte-americana.
A prática citada por Serrano tem sido uma das marcas das fundamentações do juiz Sergio Moro, que utiliza a legislação norte-americana nas suas decisões. A mais recente, Moro estabeleceu uma série de restrições por conta própria à atuação de órgãos de controle e do governo federal às delações, proibindo o uso de provas obtidas pela Operação Lava Jato contra delatores e empresas que reconheceram crimes e passaram a colaborar com os procuradores à frente das investigações. Moro admite que não há jurisprudência sobre o tema no Brasil e recorre ao direito americano para embasar sua opinião, argumentando que nos Estados Unidos "é proibido o uso da prova colhida através da colaboração premiada contra o colaborador em processos civis e criminais".
Serrano salientou ainda que a Lei da Ficha Limpa segue o paradigma autoritário e conservador de que as liberdades devem ser limitadas por critérios de justiça e de tradição de comportamento.
“A corrupção seria um elemento que limitaria a soberania popular. Na história há sempre esse conflito: o conservadorismo querendo limitar a democracia. O modelo norte-americano é o que procura valorizar as liberdades em detrimento das práticas democráticas. Portanto, a soberania popular está sob ataque no mundo todo e o caso do Lula, ao meu ver, é importante para haver uma resistência”, destacou Serrano.
Criminalização da política
Alessandro Soares, advogado e professor de Direito Constitucional da Escola Paulista de Direito (EPD), também defendeu que o princípio democrático é o elemento central da atual disputa e a defesa da candidatura do ex-presidente Lula é a defesa democrática.
“Hoje há um discurso, cuja Lei da Ficha Limpa é o elemento central, da criminalização da política em que a política é rejeitada por parte da mídia, pelas leis e de alguma forma rejeitada pelas instituições”, lembrou Alessandro, reforçando que o debate central é o direito de votar e ser votado.
O professor da EPD diz que o objetivo das atuais medidas em curso, principalmente pelo Judiciário, “é limitar a participação política como instrumento de domínio específico de agrupamento da elite”.
Ele lembrou que esse mesmo mecanismo surgiu em 2014, de maneira diferenciada, logo após a eleição de Dilma Rousseff como presidente da República, em que o primeiro discurso da oposição foi questionar a urna eletrônica, ou seja, questionava o voto.
“Quando não puderam questionar a própria urna e a técnica utilizada para apuração, questionou-se a capacidade intelectual dos votantes. Há uma velha tradição que sempre aparece e que vai se consubstanciar no voto censitário. A ideia de que alguns teriam capacidade de eleger e o resto da população deveria ser eliminada desse processo político”, frisou.
“Esse discurso criminalizador da política só atende o campo antidemocrático. Passar o jogo político da democracia para institucionalidade é o que o Judiciário tem feito hoje. Negar a participação política e retroalimentar toda a tradição histórica antidemocrática”, acrescentou Alessandro, enfatizando que a “palavra de ordem que pode dar o substrato de candidatura de Lula é a soberania do voto”.
O jurista Celso Antônio Bandeira de Mello defendeu o direito de o povo brasileiro votar no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Fraudar, impedir, dificultar a candidatura de Lula seria uma aberração. O povo quer Lula. Não é nenhum outro. Alguém tem dúvida em relação a isso, em face às pesquisas, que são pesquisas absolutamente insuspeitas?”
O advogado e ex-governador de São Paulo Claudio Lembo disse que jamais viu situação de afronta à Constituição como na atualidade. “Estamos vivendo a pior fase da vida política do Brasil. É uma democracia frágil, de fachada. Vivemos uma grande farsa”, afirmou.
Cláudio Lembo: Cenário macabro
“Já vivi situações muito difíceis, como na ditadura, mas nunca vi nada tão imoral”, declarou o ex-governador, acrescentando que o Poder Judiciário se tornou um instrumento político.
“É lamentável. O ativismo político que muitos defenderam durante um determinado tempo se tornou uma arma horrível contra a sociedade, particularmente contra aqueles tradicionalmente mais fracos dentro da estrutura de poder existente no Brasil tradicionalmente”, enfatizou.
Ele classifica a atual conjuntura como um “cenário macabro” e diz que “é ingenuidade pensar que a Constituição existe”.
“A Constituição de 88 passou a ser algo absolutamente secundário. Está aí o caso da presunção da inocência que, apesar de ser tão clara a Constituição foi tão violento o que fez o Supremo que não temos palavra para reagir”, disse ele se referindo sobre a prisão automática em segunda instância.
“A única forma que vejo é a movimentação social”, defende Lembo, apontando ainda que o desafio é grande, pois os meios de comunicação estão sob o comando do golpe.