EUA – quem deve pagar pela crise dos sem teto?

As cidades da Califórnia (EUA) estão apostando em cobrar impostos dos grandes negócios para financiar moradias populares, depois de um notável fracasso na cidade de Seattle. E podem ter mais sucesso.  

Por Sarah Holder (*)

Moradores de rua em São Francisco, EUA - reprodução

As grandes empresas querem impostos menores; ao contrário, as cidades e seus habitantes querem menos moradores de rua. Ultimamente estas vontades estão sendo testadas à medida em que os governos locais dos EUA adotam uma nova estratégia para diminuir o número crescente de pessoas desabrigadas em suas ruas: fazer com que as empresas paguem uma fatia maior do custo financeiro para resolver o problema.

Na semana finda em 21 de julho, uma coalizão de defensores dos sem-teto, sem fins lucrativos, e grupos de inquilinos de São Francisco, tomou uma iniciativa para a votação de novembro (quando ocorrerão eleições legislativas nos EUA) que, se aprovada, quase dobraria os gastos da cidade com abrigos usando um aumento no imposto sobre as receitas brutas das empresas.

"Há tanta riqueza em São Francisco que podemos [usar] para resolver um problema de longa data", disse Mary Howe, diretora executiva da Homeless Youth Alliance (Aliança da Juventude Sem Teto), de São Francisco. “Esta é uma oportunidade para todos nos unirmos: todos nos beneficiaríamos ao ver as pessoas saindo da pobreza e da falta de moradia.”

Esta notícia vem algumas semanas depois do que ocorreu em Seattle – lar de empresas como Amazon e Starbucks, e da terceira maior população de moradores de rua dos EUA -, que capitulou ao tentar aplicar um plano semelhante. Depois de semanas de debate, o conselho da cidade aprovou um imposto sobre as maiores corporações de Seattle, que levantaria US $ 47 milhões para iniciativas por moradias populares e a favor dos desabrigados. Embora o novo imposto já tivesse sido negociado, em quase metade do se previa inicialmente, depois de um ultimato da Amazon logo se formou uma coalizão anti-impostos mais ampla: a gigante do comércio eletrônico, junto com a Starbucks, Vulcan e outras empresas, iniciou uma campanha para submeter a questão a um referendo, na eleição de novembro. Mas o conselho de Seattle votou pela anulação da medida.

"A oposição tem recursos ilimitados", disse em tom de lamento um membro do conselho da cidade de Seattle, na votação contra o imposto que a maioria deles já havia apoiado.

A rápida reversão do imposto em Seattle foi motivo de alarme – a rendição foi rápida e completa – mas o golpe ainda não provocou a desistência de outras cidades de fazerem esforços semelhantes.

A proposta de São Francisco, chamada Artigo 28, está alinhada aos planos de outras cidades da Califórnia: Mountain View, sede do Google, que tem 23 mil funcionários – aumentará o imposto sobre licença de negócios, que será votada em novembro. Planejam usar a receita para projetos locais de transporte e habitação. Cupertino, que tem uma grande presença da Apple, hesitou em aprovar um imposto próprio este ano, mas o prefeito de Cupertino, Darcy Paul, compareceu ao encontro de planejamento de Mountain View, e inspirou-se para um futuro projeto fiscal. E em junho, o conselho da cidade de Filadélfia aprovou um imposto extra sobre projetos de construção, que arrecadará US $ 22 milhões para serem aplicados em moradias populares. Outras cidades, como São José, Redwood City e Sunnyvale, já têm impostos semelhantes, mas a arrecadação não é destinada especificamente a projetos habitacionais.

Não é coincidência que a tensão ocorra especialmente em cidades com grandes empresas de tecnologia, onde o rápido crescimento econômico tem sido freqüentemente associado à crescente desigualdade social.

Em São Francisco, essa discrepância é cada vez maior. Com base em um censo de 2017, mais de 7.000 pessoas sofrem a falta de moradia em São Francisco. Um em cada cinco deles tem menos de 25 anos de idade. O sistema de abrigos tem uma fila de espera de 1.000 pessoas para seus 2.500 leitos.

"Os são franciscanos não deveriam ter que passar por cima das pessoas sem-teto ou sair de casa e ver tendas nas calçadas, e os sem-teto não deveriam ser forçados a viver nessas condições", diz uma militante da iniciativa "A intenção dos eleitores em adotar o Artigo 28 é diminuir significativamente a presença visível de pessoas desalojadas e acampadas nas ruas da cidade; querem eliminar a crônica falta de moradias."

São Francisco já gasta por ano quase US $ 300 milhões em medidas a favor dos desabrigados. O prefeito provisório Mark Farrell aumentou em US $ 29 milhões os gastos com a falta de moradia, direcionando a maior parte do orçamento para programas "destinados a evitar que as pessoas caíssem na falta de moradia". Mas os proponentes da iniciativa querem dobrar o orçamento e alocar o dinheiro extra não apenas para a prevenção da falta de moradia, mas para ajudar, construindo mais moradias para as pessoas que estão nas ruas.

"A cidade gasta cerca de 3% de seu orçamento de US $ 10-11 bilhões em habitação e sem-teto", disse Kate Chaloemtiarana, voluntária da Coalition on Homelessness (Coalizão para os Sem Teto), uma das organizações de São Francisco que redigiu o projeto. "A razão pela qual sentimos que isso não é suficiente é que a maior parte é gasta com pessoas que estão atualmente alojadas, o que deixa apenas 1% para as pessoas que não estão."

As cidades da Califórnia não podem implementar seus impostos de renda locais, observa o vice-presidente da Câmara de Comércio da cidade, Jim Lazarus, de modo que um aumento no imposto bruto sobre as receitas, como o proposto, é o mais viável. A cada ano, as receitas brutas somam US $ 800 milhões, cobrados às maiores entre as 900 e 1.000 empresas que operam em São Francisco.

O Artigo 28 propõe aumentar este imposto em uma média de meio por cento, permitindo que a cidade use arrecadação extra de US $ 300 milhões para diminuir o tempo de espera dos abrigos, financiar instalações para cuidados de saúde mental e uso de drogas. Inicialmente a ideia é priorizar habitação permanente. Dentro de cinco anos, os defensores da iniciativa esperam atender a pelo menos 4.000 pessoas desabrigadas e instalar mais 1.000 abrigos. "Entendemos que as empresas que ganham uma tonelada de dinheiro não ficarão felizes em saber que está sendo criado um novo imposto", disse Chaloemtiarana. "Mas nós agimos certificando-nos de que essa medida fosse tão simples quanto possível: é por isso que é um imposto de meio por cento".

Chaloemtiarana está certa: mesmo que pareça uma pequena mudança para as empresas que ganham US $ 50 milhões ou mais por ano, nem todas ficarão felizes. As críticas mais contundentes até agora não vieram diretamente de gigantes da tecnologia local como o Twitter, que não comentou, mas da Câmara de Comércio de São Francisco, que foi consultada no processo de redação. Embora ainda não tenha assumido uma posição formal, seu vice-presidente Lazarus diz que a proposta é uma política fiscal ruim: em 2012, São Francisco iniciou a conversão de um imposto sobre os salários para o atual imposto bruto que ainda não foi totalmente concluída. Manter as taxas e as isenções em ordem é melhorar, disse Lazarus. E acrescentar outra mudança estrutural ao imposto sobre as receitas brutas, sem mexer na folha de pagamento, seria prematuro.

"Enquanto isso, um imposto sobre cuidados para a infância [está sendo decidido], há um imposto sobre a rede de transporte, há agora um imposto sobre receitas brutas para os sem teto e um imposto sobre receitas brutas de cannabis", disse ele. “Temos todas essas peças em movimento. Então, essa é uma das nossas preocupações: a política fiscal em geral.”

No entanto, ele reconhece que o imposto de São Francisco não é tão oneroso quanto o de Seattle. "Esse foi um imposto principal [cobrado por funcionário contratado], o que é ainda mais difícil de justificar quando você está tentando manter empregos", disse ele. E, como disse Jason McDaniel, professor de ciência política na Universidade de São Francisco: “suspeito que as empresas locais não têm o mesmo tipo de relacionamento com o establishment político que há em Seattle. Não há Amazon aqui. Não é como uma cidade da empresa”.

Ao receber a iniciativa de votação por meio de petições, os defensores apelaram para o apoio popular, mas agora esperam mobilizar os líderes da cidade.

O imposto de Mountain View é menos radical e conta com o total apoio do prefeito, Lenny Siegel, que ajudou a redigir o projeto. Em junho, o conselho da cidade votou por unanimidade para levá-lo às eleições de novembro. Em vez de se concentrar especificamente em moradias populares ou pessoas sem moradia – projetos com claros benefícios para a comunidade, mas com impacto menos direto em funcionários altamente qualificados do Google -, Siegel diz que a cidade usará 80% dos recursos em projetos de transporte, incluindo infraestrutura para integrar o ônibus autônomo da frota do Google. "Estamos falando de gastar o dinheiro em coisas que também beneficiarão nossos empregadores", disse ele. Dez por cento irão diretamente para a construção de moradias mais acessíveis.

E, ao contrário de Seattle, onde a oposição da Amazon foi feroz e imediata, o Google ainda não comentou publicamente a medida. "O Google teve sua chance – se eles iriam se ôpor a isso, já deveriam ter feito isso", disse Siegel. O Google se recusou a comentar.

Siegel diz que o relacionamento da cidade com as empresas não é antagônico e, citando pesquisas favoráveis de opinião pública, prevê que o imposto passará facilmente. Não obstante, seu destino foi, por um momento, ligado a uma controvérsia fiscal mais ampla, que também punha a política do Estado e os interesses comerciais uns contra os outros. Para combater o imposto estadual de refrigerante na Califórnia, os lobistas da indústria de bebidas exigiram que as cédulas estaduais de votação incluíssem uma opção pela votação de dois terços para aprovar mudanças tributárias locais, em vez da aprovação de 50%. Foi um movimento que o senador Scott Weiner chamou de “verdadeiramente vil” e o governador Jerry Brown chamou de “uma abominação” – pois tornaria praticamente impossível aprovar quaisquer impostos locais em Mountain View ou em qualquer outro lugar. "Nós temos o suficiente para o voto da maioria de 50%, mas não o suficiente para uma votação de dois terços", disse Siegel. Um porta-voz da American Beverage Association, enquanto isso, insistiu em um comunicado: "Nosso objetivo é ajudar as famílias trabalhadoras, impedindo aumentos injustos em suas contas de supermercado".

No final, a Big Soda foi vitoriosa. Em junho, o governador Jerry Brown proibiu preventivamente os impostos de refrigerante em todo o estado.

A vitória foi difícil: apesar de dar ao imposto de Mountain View uma chance maior de aprovação; serviu como exemplo de quem ganha quando as empresas e as prioridades do governo entram em conflito.

(*) Sarah Holder é redatora do CityLab.

Traduzido por José Carlos Ruy