PM Juliane Duarte morreu nas mãos dos assassinos e da imprensa

No caso da PM, repete-se a lógica de matar pela segunda vez, mas agora de forma simbólica. Criminosos torturaram e mataram Juliane (ou Dudu). Atiraram em seu corpo. A Folha invadiu a sua intimidade sem que isso tivesse qualquer relevância jornalística. Atirou na sua honra, ferindo a imagem de quem nem pode mais falar por si.

Por Tatiana Dias, Nayara Felizardo, Cecília Olliveira, do The Intercept Brasil

Juliane Duarte PM - Foto: Reprodução

Juh Duarte – ou Juliane dos Santos Duarte, ou mesmo Dudu Duarte, como se apresentava em algumas ocasiões, segundo relatos – era Policial Militar. Foi brutalmente assassinada na semana passada em São Paulo. Ela desapareceu na favela de Paraisópolis, zona sul da cidade, e seu corpo foi encontrado quatro dias depois. Entrou para as estatísticas de policiais mortos – desde 2007 foram 680 no estado, a maioria fora de serviço – e também para a história do jornalismo, em um exemplo brutal da falta de sensibilidade do que chamam de ~isenção jornalística.

Nesta quinta, a Folha de S. Paulo publicou um texto narrando os “últimos momentos” da PM, dando atenção especial à sua orientação sexual, atributos físicos de sua companheira, possível traição e detalhes sobre uma noite de diversão na favela que precederam sua morte. O texto, escrito por um homem, romantiza a relação de Duarte com suas amigas em uma noite de sábado e usa como fonte o Boletim de Ocorrência. Em outras palavras: transforma o BO de um crime brutal em um conto erótico de quinta categoria.

Mas o texto só narrou os fatos e o que diz o BO, você pode argumentar. É, é uma defesa possível. O texto romantizou os relatos do Boletim de Ocorrência e o transformou em uma história palatável, pronta para ser empacotada e consumida por uma sociedade que adora cultivar seus próprios preconceitos e fetiches – especialmente se eles envolvem mulheres lésbicas, ou pessoas transexuais, ou [inclua aqui qualquer outro tabu sexual].

Fingindo que o jornalista não é uma pessoa – com suas próprias visões de mundo, posicionamentos, vontades e dores –, os veículos usam o escudo de “apenas narrar os fatos” para se eximir da ideia de que há sim escolhas pessoais ou não dentro de uma reportagem.

A escolha da pauta – por que vamos falar desse tema e não deste outro? – já é um posicionamento. O ângulo através do qual a história será contada também. No caso do texto que romantiza “os últimos momentos da PM”, a escolha foi sexualizar as vítimas, vistas por um olhar masculino louco por detalhes da história. Basta ler com atenção as cenas descritas no bar. A maneira como o texto é escrito, a narrativa, é também um posicionamento. E, por fim, o título. É nele que a maioria dos leitores para de ler, que passa a mensagem que circula primordialmente. Dizer que ela teve últimos momentos livres com bebida, beijos e dança foi a escolha mais desrespeitosa possível ao tratar de uma policial militar morta brutalmente e que tinha direito de se divertir como bem entendesse em seus momentos de folga.

O texto em questão, que não vamos linkar para não expor a vítima mais uma vez,
não foi apenas a narração dos fatos de forma fria. Foto: Reprodução/Folha de S.Paulo


Expor uma mulher que está na condição de vítima já é algo corriqueiro na imprensa e em posts de machistas nas redes sociais. E, quando ela é também lésbica (ou quando é um homem trans), pelo jeito, fica mais fácil agir com desrespeito. No texto da Folha, Juliane, Juh ou Dudu (as maneiras como se apresentava, segundo relatos de amigos publicados pela mídia) é reduzida a uma lésbica, pegadora, que se arrisca e canta de galo no bar da favela. É uma versão da frase “mas, também…”, usada sem pudor para culpar mulheres vítimas de violência.

Nas entrelinhas, o título do texto diz “olha como era promíscua!”. Uma característica geralmente associada aos gays, às lésbicas, aos bissexuais, às travestis e aos transexuais. Basta ver os comentários relacionados à postagem do jornal para ver que a intenção, se foi essa, foi bem-sucedida. Se não foi, é consequência de uma postura irresponsável.

No caso da PM, repete-se a lógica de matar pela segunda vez, mas agora de forma simbólica. Criminosos torturaram e mataram Juliane (ou Dudu). Atiraram em seu corpo. A Folha invadiu a sua intimidade sem que isso tivesse qualquer relevância jornalística. Atirou na sua honra, ferindo a imagem de quem nem pode mais falar por si.

O assassinato da PM é – ou deveria ser – uma notícia para levantar discussões sobre mortes de policiais militares (que, ao contrário do que tentam dizer, é uma pauta fundamental para a defesa de direitos humanos), sobre violência contra LGBTs e pessoas negras. Não sobre sua intimidade.