Fortalecer o Caminho Brasileiro ao Socialismo

A relação do Brasil com a América Latina sempre foi, e continua sendo, alvo de profundas polêmicas. Está consolidada a imagem de que o Brasil fora constituído de costas para o Continente, ignorando a África e de frente para os EUA e Europa.

Mateus Fiorentini*

Integração Latino-americana

Durante os governos Lula e Dilma mudamos essa história e apostamos em um projeto de integração regional, cooperação com a outra margem do rio que chamamos Atlântico e a abertura de laços com outras partes do mundo. Com o Brasil do golpe, a política externa da Casa Grande volta a conduzir o Itamaraty. Assim, há 4 anos do bicentenário da independência do Brasil e do centenário do Partido Comunista torna-se pertinente refletir sobre as nossas relações com os países vizinhos e seu nexo com a identidade nacional e o caminho brasileiro para o socialismo.

Durante um longo período o debate em torno das características que distinguem as classes sociais da América Latina de suas homólogas de outras regiões alimentou profundas polêmicas no campo da esquerda. Atualmente é ponto vencido entre esses setores a compreensão acerca do caráter antinacional e antipopular das elites dos países colonizados. As formas de abordar a Guerra do Paraguai, por exemplo, transparecem bem essas matrizes de interpretação da história nacional. Visões esquemáticas da participação brasileira no episódio limitam-se a apontar para os interesses da Inglaterra na região. Contudo, não é possível analisá-la de maneira isolada dos conflitos referentes à formação dos Estados Nacionais na América do Sul e mesmo dos propósitos do Império Brasileiro na região. Tais perspectivas subestimam a Classe Dirigente e desqualifica seu papel como tal. Ao olharmos para o evento de maneira mais ampla e profunda veremos que além de termos dizimado a grande maioria da população masculina, adulta e infantil, do país, anexamos parte do território paraguaio. Ou, que como resultado da guerra, (finalizada em 1870, ou seja, 48 anos após proclamada a Independência) originou-se nesse país o que hoje é o Partido Colorado como uma organização identificada com os interesses da corte do Rio de Janeiro. Na disputa pela região do Rio da Prata vale lembrar a aliança feita entre as oligarquias brasileiras, ligadas ao Império, com grupos opositores ao presidente argentino Juan Manuel de Rosas armando exércitos para derrubá-lo na metade do século XIX. Podemos recordar ainda que a independência do Uruguai deu-se em oposição à Argentina e Brasil, consolidando-se em 1828 quando deixa deixa de ser Província Cisplatina (parte do território brasileiro, portanto) para converter-se em Uruguai. Ou seja, podemos ver uma continuidade da prática colonial portuguesa nas posturas da corte do Rio de Janeiro e um interesse muito maior por parte desta Classe Dominante na América Latina do que se acredita.

Por outro lado, devido ao caráter periférico do capitalismo desenvolvido no Brasil produziram-se interpretações homogeneizadoras e esquemáticas sobre a Burguesia originada aqui. Tais perspectivas, ainda que pretendam identificar a singularidade dos processos gerados no Continente Latino-americano acabam recaindo em uma tipificação ideal do capitalismo europeu, principalmente. Partindo desse ponto de vista, acredita-se que nos países desenvolvidos originou-se algo como o “verdadeiro liberalismo”, ou um “liberalismo de tipo clássico”. De outro lado, é contumaz a afirmação de que os liberais brasileiros são tudo, menos liberais, pois, por razões variadas, estariam bastante distantes desses modelos europeus. Ora, se compreendemos que não existe modelo de revolução socialista, o mesmo vale para as revoluções burguesas da Europa. Assim, tais vertentes expressam concepções a-históricas de análise da realidade, uma vez que negligenciam as transformações concretas que evidenciam as singularidades de cada formação.

Assim, para compreender as características atuais da burguesia brasileira é preciso levar em consideração o caráter heterogêneo e dialeticamente contraditório da composição social. Suas particularidades só podem ser vistas se consideradas a partir da trajetória histórica percorrida no seu fazer-se ao longo de 500 anos. Conforme afirmou-se anteriormente, no Brasil, à diferença dos demais países da região, a elite colonial manteve-se no poder e impediu a divisão do antigo território português. Isso mostra que a nossa Classe Dominante pode ser antinacional, mas isso não pressupõe a ausência de um projeto de classe ou de poder. Seu legado colonial e o seu atrelamento ao capital internacional permite identificar que nossa elite se identifica mais com seus homólogos europeus que com seus pares latinos. Preferem atrelar-se de maneira subalterna à Burguesia internacional do que conduzir seu próprio povo para a emancipação social e nacional. Entretanto, apenas uma interpretação que leve em conta a historicidade desse processo pode diferenciar os distintos setores e camadas existentes. Sem essa perspectiva arejada das classes sociais não conseguiríamos compreender o lugar social e político de figuras da nossa elite como Getúlio Vargas, Jango ou Brizola. Por conseguinte, se olharmos melhor para a história, desprendendo-se da narrativa sobre o Brasil produzida por essa mesma Classe Dominante veremos que não estamos tão de costas para a América Latina assim. A Operação Condor, durante as Ditaduras Militares na região, para citar um exemplo mais recente, mostrou como nossas direitas estão em sintonia. Da mesma forma, a subordinação das elites da América do Sul, sobretudo, ao Imperialismo norte-americano na promoção dos golpes reforça o estatuto antinacional delas. Tal qual, a subserviência ao consenso de Whashington evidencia a idolatria quase freudiana de nossa elite pelo Brother Sam. É preciso indicar, desse modo, que a postura arrogante com os vizinhos e subalterna com as grandes potências é uma prática recorrente de frações historicamente hegemônicas da classe dirigente do Brasil. Seu complexo de inferioridade faz com que vejam um status civilizatório superior ao olhar para as nações desenvolvidas com quem almejam igualar-se. Ao olhar para o Brasil e a América Latina, por outro lado, enxergam um conjunto de povos atrasados com quem nada tem o que aprender.

Se olharmos sob o prisma dos setores populares, veremos uma identidade muito maior que o discurso hegemônico tenta vender. A tradição comum africana das culturas brasileira e cubana fazem com que na Santeria e no Candomblé cultuemos os mesmos orixás. Ao olhar para a Bolívia encontraremos a matriz Tupi-Guarani, como um dos maiores troncos indígenas do país. Na Venezuela e na Colômbia os escravos que fugiam do cativeiro se organizavam em comunidades autônomas que podiam chamar-se Palenques, Cimarrones ou Quilombos. Assim, a nossa cultura e a trajetória de lutas dos nossos povos produzem caminhos para onde convergem experiências comuns diante da dominação e exploração em todo o Continente. Se conseguirmos enxergar isso entenderemos que somos mais latino-americanos do que pensamos. A narrativa sobre o Brasil, construída a partir do sudeste fala muito sobre o país e expressa a força do centro dinâmico do capitalismo brasileiro mas impede de explicá-lo como um todo. Se formos à fronteira do Brasil com o Uruguai encontraremos os “doble-chapas”, brasileiros e uruguaios de dupla cidadania que votam nos dois países. Para isso, tudo que precisam fazer é cruzar uma linha em uma praça. Na fronteira com o Paraguai, nos deparamos com brasileiros que não largam o tererê, para não falar da lendária Ponte da Amizade. Diante da realidade atual torna-se desnecessário falar sobre a proximidade do povo brasileiro com os venezuelanos e colombianos. O Brasil é muito mais complexo do que o discurso hegemônico construído sobre ele e o vínculo do nosso povo com os nossos irmãos latino-americanos é muito mais forte do que pensamos. Não faz mal prestar atenção em Che Guevara quando ele afirma que

En este continente se habla prácticamente una lengua, salvo el caso excepcional del Brasil, com cuyo pueblo los de habla hispana pueden entenderse, dada la similitud entre ambos idiomas. Hay una identidad tan grande entre las clases de estos países que logran una identificación de tipo ‘internacional americano’, mucho más completa que en otros continentes. Lengua, construmbres, religión, amo común, los unen. El grado y las formas de explotación son similares en sus efectos para explotadores y explotados de una buena parte de los países de Nuestra América. (GUEVARA, 1967. pg. 592)

Por isso, é fundamental romper com as amarras da narrativa dominante sobre o Brasil e sua relação com a América Latina. Assim veremos que não estamos de costas para a região e proporciona identificar a originalidade dos processos aqui gerados, bem como a distinção entre as práticas recorrentes do bloco de poder e o vínculo entre os povos oprimidos e explorados do Continente.

Pode-se dizer que foi com a chegada ao governo de distintos países da região de forças de esquerda e progressistas que esse ciclo foi relativamente interrompido. Setores vinculados aos projetos que chamamos de desenvolvimentistas, juntamente com aqueles que enfrentaram as ditaduras e resistiram à implementação do neoliberalismo iniciaram um processo de integração soberana e a perspectiva de uma união latino-americana. O fortalecimento do Mercosul e a criação da UNASUL da mesma forma que a criação da CELAC (Comunidade de Estados Latina-americanos e Caribenhos) avançavam na perspectiva da integração de nossas matrizes produtivas. Obras de infraestrutura, cooperação em matéria comunicacional e militar além da busca por um espaço de integração dos sistemas universitários da região avançavam na perseguição da construção um desenvolvimento compartilhado do Continente. Dessa mesma forma, a relação com o Continente Africano cuja participação na brasilidade é inconfundível e inegável permitiu ao país e a América Latina reduzir a dependência frente às grandes potências. O mesmo pode ser dito quanto a relação com os BRICS que permitiram à região almejar construir pontes com outras partes do planeta e construir projetos de desenvolvimento minimamente autônomos. Por isso, ainda que não tenham rompido estruturalmente com essa cultura historicamente hegemônica, com o golpe a diplomacia da Casa Grande volta ao governo brasileiro. Assim, evidencia-se a distinção entre as relações estabelecidas com o Continente Latino-americano por parte das elites e dos setores populares. Com Lula, parafraseando Chico Buarque, construímos um país onde um operário brasileiro não falava grosso com um indígena boliviano e de igual para igual com as grandes potências. No Brasil do golpe, falamos grosso com a Venezuela enquanto lambemos as botas dos EUA. Além de não coadunar com a identidade das classes populares em relação aos nossos vizinhos a diplomacia da Casa Grande representa um crime à larga tradição diplomática brasileira.

A ideia de um caminho brasileiro para o socialismo possui caráter histórico, não conjuntural. Está constituído pela trajetória histórica de nosso povo, suas experiências concretas de lutas ao longo de 500 anos. Exige, portanto, a compreensão da disputa acerca do sentido da nacionalidade em perspectiva de luta de hegemonias. Dessa forma, se entendemos que a luta antiimperialista é o centro da luta de classes no atual período histórico esta precisa estar acompanhada pela ressignificação da narrativa acerca da nação. Assim sendo, a real independência do Brasil não se resume, nem se esgota no estatuto jurídico de soberania nacional, nem mesmo em projetos que visem apenas a construção de um Estado soberano. Em uma visão original acerca do caminho brasileiro, independência nacional, emancipação social e democracia não representam partes de um programa estratégico, mas imbricam-se dialeticamente onde um não pode existir sem o outro. Isso não traduz-se na negação da brasilidade entendida tal como é hoje, mas na necessidade de apoiar-se nos elementos populares de sua constituição para construir uma compreensão superior do que significa ser brasileiro.

Título original do artigo é : Fortalecer o Caminho Brasileiro ao Socialismo: rumo aos 200 anos da Independência.

*Mateus Fioretini é professor de História formado pela PUC-SP e mestrando junto ao Prolam da USP. Foi secretário Executivo da OCLAE, diretor de Solidariedade Internacional da UJS e integrou a Comissão Nacional de RI do PCdoB. Atualmente é membro da seção paulista da Fundação Maurício Grabois