Publicado 03/02/2019 10:54
Creio, em primeiro lugar, que deveríamos separar o autor e a obra. A complexidade na arte é sempre maior do que no artista. Mas esta é uma outra história, muito comprida, que não cabe aqui. Quero, agora, trazer observações sobre o racismo nos livros infantis de Lobato.
Encasquetaram com Caçadas de Pedrinho, em que aparece a frase: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”. Algumas defesas bem-intencionadas dizem que é preciso “contextualizar na época”. Não acredito nessa solução.
Lobato inoculou pensamento crítico a toda uma geração, a dos que têm hoje entre 50 e 80 anos. Lembro-me de Benedito Nunes, cuja inteligência filosófica nos faz tanta falta, mostrando-me, comovido, sua coleção do Picapau Amarelo guardada em lugar de honra.
São livros que abalam todos os confortos intelectuais. Têm horror à autoridade e à obediência. No Sítio, ninguém manda nem obedece: “Emília, respeite os mais velhos! – ralhou dona Benta. – A senhora me perdoe, – disse a pestinha – mas, cá para mim, isso de respeito nada tem com a idade. Eu respeito uma abelha de um mês de idade que me diga coisinhas sensatas –mas se Matusalém vier para cima de mim com bobagens, pensa que não boto fogo na barba dele? Ora, se boto!”.
Esta é uma passagem de Histórias de Tia Nastácia. Lobato era fascinado pelas culturas afro-brasileiras, ao contrário dos modernistas que prolongaram o culto do indianismo romântico no século 20. Traz para o público infantil as histórias contadas por Tia Nastácia, que ele buscou em Sílvio Romero.
Graças ao Tio Barnabé, negro que mora entre o sítio e a floresta, faz os meninos serem conduzidos pelo Saci, um ser sincrético, mas fortemente carregado de forças africanas, no mundo tenebroso das lendas. Foi Tia Nastácia quem fez, fabricou, criou Emília. É Nastácia a grande vencedora do Minotauro. Nastácia que tem a última palavra no malfalado Caçadas de Pedrinho: “Negro também é gente, sinhá…”.
Nem todos lembram que o primeiro livro publicado por Lobato foi, em 1918, O Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito, a partir de uma pesquisa promovida por ele, fascinado que era pelo personagem.
Esquecem-se de Negrinha, conto tremendo, de crueldade dolorosa, sobre uma pequena órfã negra de sete anos, pouco tempo depois do 13 de maio, um testemunho do abandono no qual foram deixados os ex-escravos: “O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo”.
Lobato era um iluminista e acreditava na racionalidade. Mas sabia que os homens são contraditórios. Por isso, no Sítio, os personagens são tão diferentes entre si. Odiava o angelismo, que deixa insossos muitos livros infantis e que transformou as adaptações na televisão – exceto as velhíssimas, na TV Tupi, por Júlio Gouveia – em bobagem conformista.
Lobato não evitava a crueldade. Um de seus livros mais assustadores é A Chave do Tamanho. Nele está a frase de Lobato que mais me marcou: “A humanidade forma um corpo só”. Sem hierarquias. Quando uma parte sofre, é o corpo inteiro que sofre.
Seus livros levam as crianças a descobrirem que o mundo nunca foi um mar de rosas. Emília é “sem coração”, como diz o Visconde, assinalando o caráter tirânico, ávido, cruel da boneca, capaz de surrupiar o que não é dela. Ela retruca: “Dizem todos que não tenho coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração – só que não é de banana. Coisinhas à toa não o impressionam; mas ele dói quando vê uma injustiça”. Os dois, Visconde e Emília, estão certos, porque ninguém é sem contradições.
Só quem não leu ou não compreendeu os livros infantis de Lobato pode julgá-los racistas. Não ensinam o moralismo sentimental. Antes, induzem à crítica, ao exame, à independência do pensamento individual e autônomo.
Dona Benta não tem autoridade por ser adulta – chega a virar uma tartaruga de óculos, em Reinações de Narizinho. Mas o que ela faz é instilar no leitor o conhecimento ativo, interrogador, inconformado, sedento. Nisto está o gênio insuperável de Lobato.
Suas obras caíram agora em domínio público. Boa nova. Que as crianças – sejam lá de que origem forem – se apaixonem por elas. Mais do que nunca, é de pensamento livre que precisamos.
* Jorge Coli, professor de história da arte na Unicamp, é autor de O Corpo da Liberdade