Cyro Aranha no Vasco x Resende

Cyro Aranha há muito não ia a um jogo do Vasco. E não porque faleceu há 34 anos. Os espíritos que chegam aos Campos Elísios, ao Valhala, Nirvana, Paraíso ou outra denominação ao gosto do freguês, têm como um dos privilégios ir aonde lhes der na telha.

Por Wevergton Brito*

Cyro Aranha Vasco

Melhor presidente da história do Vasco (tendo montado o “Expresso da Vitória”), autor da célebre frase: “Enquanto houver um coração infantil, o Vasco será imortal”, Cyro Aranha andava triste com algumas coisas que aconteciam no Clube, mas como era semifinal de turno, lá foi ele ao “Maraca”, cercado de outros espíritos vascaínos.

O papo corria animado no grupo, que lembrava histórias do Vasco de antigamente, quando de repente o telão deu um close na camisa da equipe cruzmaltina, mostrando a bandeira do Flamengo presente no uniforme. Imediatamente, todos se calaram.

Um dos espíritos quebrou o silêncio: “Não acredito nisso!”.

O silêncio retornou até que outro espírito disse: “Dá vontade até de sair do estádio”, mas ninguém pareceu se animar a ir.

O “presidente”, como os outros espíritos chamam Cyro Aranha, continuava calado, mas um olhar atento conseguiria notar, em sua expressão serena, a marca da tristeza.

“O Campello fez isso para conquistar os aplausos da mídia”, dizia um. “E vai conseguir”, retrucava outro, que prosseguiu: “porém, a torcida está revoltada. Vejam como xingam o Flamengo, mais do que o de costume”, no entanto, outro espírito, atento às redes sociais, advertiu: “Mas não é isso que está parecendo aqui nas redes. O debate está dividido. É incrível amigos, mas alguns vascaínos estão defendendo a bandeira do Flamengo na camisa do Vasco”.

De súbito, o presidente resolveu falar e informou aos demais: “Dulce Rosalina foi embora”. Só então todos repararam que a torcedora símbolo do Vasco, falecida em 2004, havia silenciosamente deixado o grupo.

O presidente prosseguiu: “Dulce era casada com nosso amigo Ponce de León, que foi zagueiro. Ponce conta que quando jogava no São Paulo fez um gol em uma partida contra o Vasco. Quando chegou em casa Dulce havia quebrado o apartamento inteiro”. Todos riram. O presidente completou: “Ela é vascaína das antigas. Não aguentou ver nosso uniforme com a bandeira do Flamengo. Deve estar indo quebrar alguma coisa.” Novos risos.

Cercado pela atenção reverente dos demais espíritos, Cyro Aranha continuou: “Fiz parte do grupo de recepção aos garotos que morreram no incêndio do Flamengo. Toda homenagem para eles é pouca. Mas tenho certeza de que a mãe de cada um deles deve querer distância de quem vier com o papo de ‘Força Flamengo’, afinal o Flamengo é, em boa medida, responsável pela morte dos garotos”.

A fala de Cyro Aranha é típica dos espíritos que têm toda a eternidade pela frente: entrecortada por grandes silêncios, ela segue sem perder o fio:

“A impressa vai fazer tudo para exaltar a presença da bandeira no Flamengo em nosso uniforme. E se o Vasco vencer hoje, como deve vencer, o Campello vai sair por cima, com apoio dos jornais, rádios e tvs e com a maior parte da torcida aplaudindo. É assim mesmo amigos. A torcida não conhece nossa história. Quando Augusto Prestes assinou a resposta histórica a imprensa caiu matando. O futebol era para ser hobby de ricos e os jornais tentavam desqualificar nossa equipe dizendo que pagávamos pobres para jogar em nosso time. O Flamengo, na ocasião, é que propôs a tal comissão de inquérito para investigar as ‘origens sociais’ dos nossos jogadores. Enfrentamos e seguimos adiante. Quando da construção de São Januário, a mesma má vontade: diziam que São Cristóvão não comportaria um estádio daquele tamanho entre outras coisas”.

Grande silêncio.

Voltou a falar o presidente: “Vocês lembram em 1945 quando eu autorizei o Luís Carlos Prestes, que tinha acabado de sair da cadeia, a realizar em São Januário o comício do Partido Comunista do Brasil? Eu havia deixado a presidência do Vasco em 43, mas a gritaria dos jornais foi tão grande que fui obrigado a renunciar ao cargo que ocupava na diretoria. Um ano depois, em 1946, assumi pela segunda vez a presidência do clube. O Vasco sempre foi isso. Remou contra a maré. Nunca procurou aplausos fáceis e se tornou gigante”.

Novo grande silêncio. A partida já havia começado, mas ninguém prestava muita atenção.

O presidente retoma: “Minha maior preocupação é a seguinte: Nós, seres humanos, morremos, mas nossos espíritos continuam. O problema de um clube como o Vasco é que, se o seu espírito morre, ele acaba de vez, ou permanece apenas como um morto vivo, sem personalidade, vagando somente com sua carcaça sem alma”.

Nisso, sai o gol do Vasco.

Cyro Aranha propõe: “Vamos embora?”. Todos se levantam. Alguém pergunta ao presidente: “Você virá domingo ver a final?”. Cyro Aranha não responde. Todos entendem. O velho espírito vascaíno está ferido.