Nos EUA sob Trump, até os democratas abandonam o legado de Obama 

Uma coisa é Donald Trump reverter tudo o que Barack Obama fez. Ele já está perto de concluir isso. Do acordo nuclear com o Irã ao Acordo de Paris para combater as mudanças climáticas, Trump tem arremetido contra tudo que leva o nome de seu antecessor. A tarefa inconclusa é o programa de saúde Obamacare, que os republicanos mutilaram apenas parcialmente. É irônico, porém, que a maioria dos pré-candidatos democratas à Presidência se proponha a concluir esse esforço.

Por Edward Luce

Obama x Trump

Poucos prometem restaurar o Obamacare. A principal exceção é Joe Biden, que, como vice de Obama, ajudou a aprovar a Lei da Assistência Acessível, o nome formal do Obamacare. Mas até Biden parece se sentir em conflito entre alardear sua relação com Obama ou mudar de assunto.

Ninguém nos debates presidenciais democratas atacou Obama diretamente. Mas o distanciamento deles, ainda que discreto, não é menos enfático. Isso também pode ser atribuído a Trump. Além de sua guerra de terra arrasada contra seu antecessor, Trump também destruiu as premissas da era Obama.

Obama foi eleito com a sublime promessa de encontrar o que os americanos tinham em comum. Não havia Estado republicano ou democrata em sua visão de mundo, mas só um país unido. Só se passaram dez anos desde então. Mas, para os democratas, é como se o governo Trump tivesse começado no ano zero. O persistente choque do partido com a eleição de Trump supera a nostalgia da campanha de 2008 de Obama.

Esse é um dos motivos pelos quais a liderança de Biden é tão instável. Ao contrário dos outros 23 pré-candidatos democratas, Biden acredita que Trump é uma aberração, uma anomalia temporária. Basta derrotá-lo em 2020 e os EUA poderão retornar às “certezas” dos anos Obama. Poucos compartilham desse ponto de vista otimista.

Os EUA estão divididos de forma demasiado amarga para haver possibilidade de cura apenas por meio de esperanças. Obama veio de um lugar de magnanimidade. Esse também é o sentimento de Biden. A maioria dos outros pré-candidatos democratas, porém, entrou em modo de vingança. Não faria sentido para os democratas reviverem as conversas de um EUA unido enquanto defendem o impeachment de Trump.

Trump também radicalizou os democratas. Olhando em retrospectiva, o governo Obama parece o epítome do establishment. Estava repleto de nomes vindos de Wall Street. Nas palavras do escritor George Packer: "Obama era um tecnocrata disfarçado de visionário." A reação contra a sua falta de visão é um dos motivos pelos quais muitos dos principais democratas, incluindo Elizabeth Warren e Kamala Harris, juntaram-se a Bernie Sanders na defesa de um sistema de assistência médica de financiamento exclusivamente público.

É por isso também que Biden foi tão duramente questionado, pelos rivais democratas, se ele havia contestado reservadamente a deportação de mais de 2 milhões de imigrantes ilegais no governo Obama. Biden disse que era uma questão confidencial. É embaraçoso para o partido que Trump ainda não tenha chegado nem perto do histórico de deportações de Obama.

Em outra era, os democratas teriam se comprometido a restaurar o que Trump está desfazendo. Em vez disso, estão prometendo uma mudança radical. Nem Biden estaria disposto a retomar o Acordo de Paris. Pelos padrões do proposto "New Deal Verde", o acordo negociado por Obama cheira a demasiada cautela. Obama defendia uma estratégia energética do tipo "todas as alternativas acima".

Na quarta-feira, Biden quase chegou a prometer abolir todos os combustíveis fósseis. Em 2009, Obama disse a executivos de Wall Street que ele era o que os separava da fúria das massas. Hoje os democratas são a fúria das massas. Bill de Blasio, o prefeito de Nova York, até criou um site sobre como arrancar a pele dos ricos com impostos.

O que vai sobrar, então, do legado de Obama? O aspecto mais radical da eleição de Obama foi seu teor étnico. Como primeiro presidente americano não branco, ele fez história. A provocação racial de Trump tem complicado essa redenção nacional. Não há nada, porém, que Trump possa fazer para erradicar o exemplo de Obama.

Metade dos pré-candidatos democratas no debate com Biden na quarta-feira não era branco. Havia ainda Warren, uma mulher branca, Peter Buttigieg, um homossexual casado, Bernie Sanders, um socialista. A lista é completada por Julian Castro, mexicano-americano, e Cory Booker, negro.

Tal escalação seria inconcebível há poucos anos. Enquanto olha os escombros de hoje, Obama também pode ter outra consolação: pelo menos ele é mencionado uma ou outra vez. Bill Clinton, em contraste, desapareceu. Na era do #MeToo, o 42º presidente dos EUA é persona non grata. Os democratas empenham-se em depurar o passado. Dado o humor predominante, seria uma surpresa se Biden conseguir se manter até a linha de chegada.