Turismo e militância política andam juntas na terra onde nasceu Jesus

Em nenhuma outra época do ano há tanto trabalho para os guias turísticos palestinos quanto no Natal. Cristãos de todos os lugares do mundo visitam Belém, cidade onde está a Basílica da Natividade, construída no século IV no suposto local de nascimento de Jesus Cristo.

Foto: Manuela Simões

Para Baha Hilo, o mais célebre entre os guias de turismo da Palestina, a celebração do Natal vai além de uma oportunidade de trabalho. É também uma ocasião para ampliar sua militância política, demonstrando para os turistas como seu povo sobrevive sob a ocupação e opressão de Israel.

Foi a necessidade que empurrou para a profissão de guia turístico esse cientista político e sociólogo graduado pela Universidade Birzeit, na Cisjordânia. Depois de estudar em Nova York e realizar trabalhos voluntários no Sri Lanka, ele voltou à sua terra natal para procurar emprego.

Sem muitas opções de trabalho num lugar onde seus 2,7 milhões de habitantes só podem circular numa área de 5.640 Kmcom autorização das forças armadas de Israel, Baha Hilo associou seus conhecimentos acadêmicos à atividade econômica para criar a To be There (algo como “estar lá”). Sua pequena empresa de receptivo oferece a turistas interessados num tour geopolítico, passeios com reflexões e discussões diante das principais atrações turísticas, intercalando com visitas a locais marcantes para a resistência palestina.

A interação constante com pessoas de vários países do mundo lhe garantiu certa notoriedade tanto entre a diáspora palestina quanto entre grupos solidários à causa, principalmente na esquerda global.

Este ano, graças a uma vaquinha virtual, a comunidade palestina no Brasil arrecadou dinheiro para custear sua vinda para uma jornada de debates em Pernambuco, Paraíba, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Como de outras vezes em seus 39 anos de vida, foi mais uma chance de sair em defesa do seu povo na condição de viajante, não como guia.

No intervalo entre o almoço num restaurante de culinária árabe no Espinheiro, e mais um debate com universitários, Baha contou que só é possível ter ideia das terríveis condições de vida dos palestinos quando se visita seu destroçado país. “Fora isso, ninguém consegue sequer imaginar”.

Mediada pela advogada Jéssica Barbosa, que fez o papel de intérprete, a conversa com a Marco Zero transitou sobre quatro temas: a condição da mulher em sua terra, a visão dos estrangeiros a respeito da Palestina ocupada, as supostas raízes religiosas do conflito e se as mudanças na política interna de Israel interferem na vida dos palestinos.

Baha Hilo numa feira livre do interior da Paraíba (Foto: Aliança Palestina-Recife)

O olhar estrangeiro

“Enquanto não se vai lá, não é possível entender o tamanho da violência a que o povo palestino é submetido”.

“Os descendentes de palestinos na diáspora têm uma conexão romântica com a pátria dos seus pais e avós. Quando chegam, ficam chocados, horrorizados, quando veem como suas famílias vivem em contato com tanta opressão política. Quando compreendem a real dimensão da dor, param de romantizar e entram em conexão com a luta dos seus antepassados”.

“Os estrangeiros solidários à causa palestina e aqueles que acreditam que existe apenas ‘um conflito’ têm um ponto em comum: acreditam que Palestina e Israel são dois espaços geográficos separados, mas ficam perplexos quando entendem que são dois nomes para a mesma terra. Esses ficam chocados quando, ao se depararem com o controle que Israel exerce em todas as fronteiras e em todos os espaços, precisam se justificar explicando que estão lá por outros motivos, pois se disserem que estão visitando a Palestina, serão deportados”.

“Entre palestinos, um estrangeiro se sente na Palestina. Entre israelenses, se sente em Israel. Se você estiver num prédio em Jerusalém ou em Haifa e entrar no apartamento de um israelense, ali será Israel. Se entrar na residência de um palestino, você estará na Palestina”.

Detalhe de uma igreja cristã na Cisjordânia (Foto: Manuela Simões)

O conflito não é religioso

“Para mudar a percepção de que há um conflito de judeus contra muçulmanos é preciso ter uma grande máquina de propaganda, milhões de dólares e uma ótima estratégia contra a desinfomação. Se você tiver tudo isso, conseguirá reduzir um pouco os danos provocados pelos sionistas ao longo das últimas décadas”.

“Aquilo que nos fazem ver como uma questão religiosa é, na verdade, um marcador racial para garantir e justificar os privilégios das pessoas judias. Se o superior é judeu, com todos seus privilégios, quem são os inferiores que não podem ter acesso aos privilégios? Os muçulmanos, a outra maioria religiosa. Se você for palestino, será tratado como muçulmano, mesmo que seja bahaí, cristão, samaritano ou agnóstico como eu”.

“No dia em que você nasce, Israel determina qual é a sua religião. Antes que eu tivesse aprendido a falar, Israel já havia colocado em minha certidão de nascimento que sou muçulmano. Eles decidiram como será minha vida até eu morrer. Fazem os mesmos com os bebês cristãos”.

“Desde 1948, o Estado de Israel faz uso abusivo da religião para justificar comportamentos e políticas violentas. Da mesma forma, o cristianismo foi usado no Brasil para justificar o genocídio indígena. Os palestinos são oprimidos por falta de fé judaica e não pela fé judaica. Os profetas judeus dizem para ‘não matar e não roubar’.”

“Ilan Pappé, um historiador judeu que é proibido de ensinar nas universidades de Israel, fala que os sionistas não acreditam no deus dos judeus, mas acreditam que deus deu a terra dos palestinos ao povo judeu. Ele também diz que Israel não é regulado pela fé, mas sim pela ideologia sionista”.

O cotidiano sob ocupação militar nos muros grafitados (Foto: Manuela Simões)

As mulheres palestinas

“Não estou me posicionando no lugar de fala da mulher, não sou porta-voz das mulheres. Sou um homem que considera as mulheres como as pessoas mais inspiradoras ao assumirem a luta contra Israel, contra o assédio de idiotas, contra a violência doméstica”.

“O patriarcado é a forma mais antiga de dominação de gênero e oprime toda a sociedade. Os privilégios masculinos na Palestina podem ser, de uma forma ou de outra, diferentes dos privilégios masculinos brasileiros, mas estão lá, como estão cá”.

“Quando adicionamos mais uma forma de dominação, que é a ocupação militar de Israel, às formas de dominação já existentes na sociedade, as mulheres são obrigadas a conviver com várias formas de opressão que se sobrepõem. Assim, toda mulher palestina convive com a dominação masculina e com a dominação israelense, que tem componentes raciais, políticos e de gênero. As palestinas sobrevivem de formas diferentes a isso, mas todas lidam com isso submetidas a normas sociais que também as oprimem”.

“As mulheres palestinas mais inspiradoras são aquelas que compreendem e rejeitam o patriarcado, mas não separam essa luta da rejeição à dominação de Israel. Quando falamos em feministas palestinas, falamos de mulheres que estão na luta contra as duas opressões. Por isso, são as mais inspiradoras. Há organizações de base como o Centro de Estudos da Mulher, de Nablus, e o Centro de Direitos das Mulheres, de Bethlelem (Belém). Não há comunidade palestina que não tenha uma organização dessas, por menor que seja”.

A “esquerda” israelense

“Para nós, palestinos, não faz diferença quem ganha a eleição em Israel porque em relação à política para os territórios ocupados, não há diferença entre a esquerda e a direita israelense. São dois lados da política sionista. O Estado de Israel é um estado sionista, então seria como escolher entre Hitler ou Mussolini, entre Trump ou Bolsonaro”.

“Benny Gantz, líder da oposição a Benjamin Netanyahu e que hoje é a principal liderança israelense, é considerado um político com posições mais ao centro. No entanto, é um criminoso de guerra”.

“Se o político ou ativista israelense negar a identidade sionista do Estado de Israel, não consegue sequer concorrer às eleições, pois é considerado ilegal. Alguns resistem, mas o impacto dessa posição é quase zero na política nacional, mas é importante que eles existam porque, depois, será possível construir com eles uma Palestina mais igualitária. Mas, o fato é que hoje não fazem diferença”.

“Tem gente que atua por acreditar que conseguirá mudar Israel por dentro, mas isso é uma história romântica, impossível. Só se muda por pressão de fora. Ditaduras podem mudar por pressão interna, mas Israel é mais do que uma ditadura”.

Inácio França é jornalista e escritor. Trabalhou como repórter do extinto Diário Popular (SP) e da sucursal paulista de O Globo. Como repórter do Diário de Pernambuco recebeu, entre outros, os prêmios Cristina Tavares de Jornalismo e Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos. Como free-lancer, assinou trabalhos pontuais nas revistas Época, Carta Capital, Globo Rural e no jornal Lance. Longe das redações, foi secretário de Comunicação de Olinda em duas oportunidades, além de oficial-assistente e consultor do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef). Recebeu também o título de jornalista Amigo da Criança (Unicef/Fundação Abrinq). Publicou seis livros (crônicas de futebol, registros de memória e história oral e a novela ‘Terezas’)

Fonte: Marco Zero

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