A lógica da frase “que apodreça na cadeia” e as longas penas de prisão

No final de janeiro o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral foi condenado mais uma vez, totalizando 280 anos de prisão. Cometeu crimes graves quando governador do Rio de Janeiro e é justo que seja punido por eles. Mas qual é o significado de penas tão longas, que não podem ser cumpridas?

Em 29 de janeiro de 2020, por decisão do juiz federal Marcelo Bretas (7ª Vara Criminal do Rio de Janeiro) o ex-governador  Sérgio Cabral foi condenado a mais uma pena, que soma 14 anos e 7 meses de prisão pelos crimes de corrupção quando exerceu o governo do Rio de Janeiro. 

Chega assim ao irrealizável total de mais de 280 anos de prisão, condenação longa cujo cumprimento é impedido pela própria biologia pois raramente a vida humana supera a marca dos 100 anos.

Não se trata de defender Sérgio Braga, que foi punido pelos crimes que cometeu quando governador do Rio de Janeiro, quando zombou da população e da lei, apropriando-se de recursos absolutamente necessários à saúde pública, entre outros desvios. Trata-se da defesa do princípio constitucional que proíbe a prisão perpétua. E leva a uma pergunta: qual é o sentido de condenações tão longas e irrealizáveis?

Pela lei brasileira, nenhuma pena de prisão pode ser maior do que 40 anos. Eram 30 anos, mas o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro – aprovado na Câmara dos Deputados com várias emendas que amenizam seu furor punitivo e antidemocrático, e sancionado em 24 de dezembro de 2019 pelo capitão presidente Jair Bolsonaro – acrescentou mais 10 anos  para “endurecer” a lei, e aumentou para 40 anos aquele limite que determina como o tempo máximo de prisão. É a lei Lei 13.964/2019, que preserva a sistemática de cálculo anterior: as penas a que um réu foi condenado são “unificadas”, e o limite do tempo de prisão aplica-se sobre o total de anos a que foi condenado. Assim, é  somado o total das penas e aplicado sobre ele o limite máximo de 40 anos de prisão. Se o réu cometer outro crime enquanto estiver preso, os anos de cadeia que cumpriu são somados, e descontados do total de 40, e ao resultado é somada a nova pena. Assim, se, aos 10 anos de prisão, o réu cometer outro crime e for condenado a mais 5 anos de prisão, tira-se 10 de 40 e aos 30 restantes soma-se a nova pena de 5 anos, totalizando 35 que passa a ser o novo total da pena a ser cumprido.

Mas ainda permanece a dúvida quanto à racionalidade desse procedimento. 

Desde os tempos do marquês de Beccaria no século 18 (há mais de duzentos anos) está incorporado ao direito a lógica do respeito à dignidade humana. É uma conquista civilizatória a idéia de que a pena de prisão existe para reeducar, recuperar e melhorar o ser humano, devolvendo-o ao convívio social. Idéia que supera a lógica de linchamento, de punições cruéis e degradantes do direito medieval e das monarquias absolutas – e que infelizmente ainda prevalece, no Brasil, no populismo penal da direita, uma mentalidade que ainda não acolheu os benefícios civilizatórios do Iluminismo. 

Há uma lógica perversa que leva a penas de prisão tão longas; ela  decorre – explicam alguns juristas – do fato de que medidas de progressão de pena são calculadas sobre o número total de anos a que a pessoa foi condenada, e não a partir do limite indicado por lei. 

Nesse sentido, em entrevista para a revista “Super Interessante”, a advogada Jenniffer Souza, de Juiz de Fora (MG) argumentou que “a quantidade final de anos de uma sentença é importante para a progressão de regime, concessão de liberdade condicional ou substituição por multa”. “Para progredir para o regime semiaberto, por exemplo, é necessário que se cumpra, em regime fechado, pelo menos um sexto da pena original. Em alguns casos, essa parcela já passa dos 30 anos, o que significa que o réu não terá direito à progressão de regime.”  

É uma maneira perversa de burlar a proibição, pela Constituição de 1988, da pena de prisão perpétua (art. 5º, inc. XLVII, b).

Usando ainda o caso de Sérgio Cabral como exemplo, sua condenação chega a mais do número total de 280 anos. Assim, ele só poderá ter direito à progressão da pena depois de cumprir 46,6 anos de cadeia – que é um sexto do número total de anos a que foi condenado. Hoje, ele – que nasceu em 27 de janeiro de 1963 – tem 57 anos de idade e, pelo critério estabelecido pela lei só terá direito à progressão da pena depois de completar 103,6 anos!

Isto é ou não uma forma canhestra, prevista em lei, de burlar a proibição constitucional de pena de prisão perpétua?

Se isso acontece com um ex-governador, que pode ter bons advogados, e cujo processo tem a ampla visibilidade que decorre de sua situação de pertencer à elite brasileira, o que se pode dizer dos milhares de pobres, anônimos, de pele escura, praticamente sem acesso a advogados, que lotam as prisões brasileiras? Quase sempre sem processos ou condenação. Confinados em prisões que põem em prática a lógica perversa do populismo penal da direita e dos conservadores, que afrontam a lei com o slogan favorito da direita: “que apodreça na cadeia”? Slogan anti-civilizitório que já foi proclamado explicitamente pelo direitista Jair Bolsonado?

No caso de Sérgio Cabral, é correto levar em consideração o que o juiz escreveu na sentença. “Principal idealizador dos esquemas ilícitos perscrutados nestes autos, o condenado Sérgio Cabral foi o grande fiador das práticas corruptas imputadas. Em razão da autoridade conquistada pelo apoio de vários milhões de votos que lhe foram confiados, ofereceu vantagens em troca de dinheiro. Vendeu a empresários a confiança que lhe foi depositada pelos cidadãos do Estado do Rio de Janeiro, razão pela qual a sua culpabilidade, maior do que a de um corrupto qualquer, é extrema”.

Mesmo assim continua a pergunta: qual o sentido de condenações tão longas, que a Constituição de 1988 rejeita?

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