Coronavírus: o que aprender com as lições da Itália

Com o crescimento de casos no Brasil, especialistas analisam semelhanças e diferenças da nossa situação em comparação à Itália

Itália está em quarentena

No dia 11 de março, devido à ampla disseminação mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mudou para pandemia a classificação da doença provocada pelo SARS-CoV-2, o novo coronavírus. O vírus que cresce no Brasil já se disseminou por todos os continentes. Mas a Itália chama a atenção pela velocidade e intensidade com que a doença se espalhou, e deixa os brasileiros “com as barbas de molho”. Lá, houve mais de 20 mil casos confirmados, com um número de morte superior a 2 mil.

No Brasil – que teve o primeiro caso confirmado em 25 de fevereiro –, o professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP Eliseu Waldman diz que é difícil prever, mas que “o aumento das ocorrências verificado nas últimas 72 horas aponta para um cenário mais tenso nos próximos dias, que poderá nos levar a um crescimento exponencial do número de casos”. Diante disso, as medidas adotadas devem ter foco em diminuir o contato entre as pessoas, algo que a Itália está fazendo de maneira incisiva, mas apenas nos últimos dias.

“Dependendo do sucesso ou não dessas medidas, a demanda dos serviços de saúde pode aumentar rapidamente e, se não conseguirmos dirigir a maior parte (que é constituída de casos leves) para a rede básica de serviços, deixando a rede hospitalar exclusivamente para os casos mais graves, teremos problemas de superlotação. Tal fato poderá gerar pânico, o que sabidamente é o que mais devemos evitar”, alerta o pesquisador da FSP.

Na Itália, os dois primeiros casos foram confirmados em 31 de janeiro, com a identificação do vírus em dois turistas chineses. “Os números até o dia 13 de março indicam uma taxa de mortalidade de 6,7% naquele país”, relata Luiz Góes, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP membro da plataforma científica Pasteur USP, esclarecendo que não há dados mais aprofundados porque a Itália foi atingida muito recentemente pela doença.

Na China, testes com pessoas doentes apontaram que o vírus estava presente em seres humanos desde dezembro de 2019. Foram registrados quase 81 mil casos até agora, com mortalidade de 3,9%. Essa taxa divergente é influenciada por fatores como a grande quantidade de idosos na Itália, além do menor número de testes e o momento em que estão sendo feitos (se o paciente já tem sintomas). Na Coreia do Sul, onde testes são feitos em massa, inclusive em pessoas assintomáticas, a mortalidade é de apenas 0,84%.

No Brasil, como na Itália, as preocupações dos cientistas estão na capacidade hospitalar, que pode simplesmente não dar conta de fornecer leitos de UTI e respiradores para os doentes mais graves. Mas também incluem outras que não estão presentes no país europeu: o tamanho e a concentração da população em metrópoles e o número de pessoas vivendo em favelas.

“Nenhum país está preparado para receber um número muito elevado de atendimentos e internações, em especial dos casos em que é preciso utilizar respirador mecânico. Mas aqui a transmissão do vírus pode ser facilitada pelas condições sociais”, diz Góes. Segundo ele, 6% da população vive em favelas, áreas de alta densidade demográfica, com grande número de moradores em uma mesma residência e falta de condições sanitárias, nutricionais e de educação ideais.

Luciana Costa, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também se preocupa com a vulnerabilidade social. “A população de baixa renda vai ter um acesso dificultado ao sistema de saúde se medidas muito claras e coordenadas não forem implementadas no tempo adequado”, diz. Ela avalia que, se o cenário for favorável neste sentido, a maioria dos casos, mesmo graves, podem ser curados.

Sobre o calor ser um potencial aliado nosso, a virologista afirma que não há nenhuma indicação de como as temperaturas influenciam, se é que influenciam, a transmissão do vírus. “A desvantagem das temperaturas mais baixas seria uma maior probabilidade de aglomerações das pessoas em locais fechados, o que é um grande facilitador da transmissão. Mas ainda não sabemos como a transmissão se comportará aqui na prática, em comparação ao hemisfério norte, que tem temperaturas mais baixas”.

Especialista em coronavírus, o professor Paulo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, ressalta que o Brasil conseguiu importantes avanços no sentido de fazer o diagnóstico rápido. “Os laboratórios estão atualizados, principalmente no estado de São Paulo, e o sistema de vigilância se mostra eficiente para detectar casos suspeitos”, diz. “O grande desafio agora é criar uma rede de laboratórios capaz de fazer diagnósticos no Brasil todo, permitindo encaminhar os casos identificados para tratamento, inclusive de outras doenças, como gripe e crises alérgicas.”

Também torna nossa situação melhor, para Eliseu Waldman, o fato de que a Itália aparentemente foi pega de surpresa, enquanto as autoridades brasileiras vêm se preparando nas últimas semanas para enfrentar o problema. Mas ele indica que serão necessários recursos suplementares, tanto financeiros como humanos. “Especialmente na rede básica, que precisará assumir o papel de porta de entrada do sistema. A operacionalização disso também implicará em despesas com insumos, equipamentos e indumentária de proteção dos profissionais de saúde, grupo costuma sofrer inúmeras baixas em casos assim”.

Pilares sanitários

Para Eliseu Waldman, mesmo que ainda haja tempo de evitar nos transformarmos numa “nova Itália”, decisões equivocadas tomadas no Brasil muito antes do surgimento da pandemia fragilizaram os “pilares da segurança sanitária” do país. Entre esses erros, ele cita: fragilização do SUS nos últimos quatro anos, com cortes contínuos dos recursos e defesa por parte de autoridades de políticas voltadas à privatização da saúde; paralisação do Programa Mais Médicos, que atendia especificamente o segmento mais vulnerável da população; diminuição do apoio aos institutos de pesquisa do SUS, especialmente a Fiocruz; enfraquecimento de políticas públicas que, direta ou indiretamente, dão sustentação aos serviços de saúde, com destaque para as universidades e seus programas de pós-graduação e o financiamento à pesquisa.

Luiz Góes, que acompanha os estudos sobre o SARS-CoV-2 realizados em todo o mundo, explica que há três fatores que podem influenciar na taxa de mortalidade pela doença. Um deles é a distribuição etária da população. “Um estudo de 44 mil casos na China mostrou que 14,8% das mortes aconteceram em pessoas com mais de 80 anos. Da mesma forma, são levados em conta a presença de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, e a capacidade de resposta do sistema de saúde”, relata o pesquisador.

“Apesar de a Itália ser o segundo país do mundo que mais realizou testes para detectar o vírus, ainda não estão disponíveis dados epidemiológicos com o mesmo volume e mesma rapidez dos produzidos na China, sem os quais é impossível entender o avanço da doença”, ressalva. Segundo ele, “na China, a intensidade com que se atacou a disseminação viral foi extremamente agressiva. Agora, a Itália está tomando medidas similares”, diz, referindo-se à extensão a todo o território do país da quarentena e das restrições à movimentação de pessoas, que antes vigoravam apenas na região norte.

De acordo com Góes, as variações do nível de mortalidade do vírus não podem ser atribuídas às mutações. “Até agora, os dados não indicam mutações significativas no genoma do vírus, capazes de aumentar sua virulência”, aponta. A virologista Luciana Costa lembra que estamos falando de um vírus “com um genoma de 30 mil bases nucleotídicas [as ‘peças’ do DNA] e apenas três diferenças identificadas”. Para ela, é preciso cautela com especulações. “Vamos precisar de um número muito maior de sequências para suportar as conclusões que estão sendo tiradas agora”.

A pesquisadora diz também que essas mutações não devem dificultar a produção de uma vacina – não mais do que já foi observado para outros vírus e outras vacinas, ao menos. “A princípio, não é um número suficiente de mutações e nem estão localizadas em regiões críticas do genoma para inviabilizar uma vacina”. Vacina essa que, inclusive, está a caminho. “Já temos uma experiência acumulada na busca de vacinas contra o [vírus] influenza e contra o coronavírus da Sars de 2002 e que são um ponto de partida para facilitar o trabalho”, comenta.

Com informações do Jornal da USP

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