Discurso extremista de esquerda

Antes de prosseguir na análise de típico discurso de “denúncia do capitalismo”, cabe analisar alguns fatos e dados para dimensionar o sistema financeiro nacional. É necessário verificar quem são seus participantes. São apenas “especuladores” ou “rentistas parasitas” como sugerem os críticos do socorro financeiro?

PEC autoriza Banco Central a comprar títulos privados

“A classe dominante aproveita a calamidade sanitária do coronavírus para executar o mais ambicioso e vultuoso assalto ao cofre do Banco Central do Brasil através da PEC 10/2020, que cria o ‘orçamento de guerra’ fake. As estimativas mais baixas estimam que com esta PEC o Banco Central fará um socorro indecente de mais de R$ 600 bilhões a bancos e especuladores do mercado. Com isso, os especuladores poderão desovar os títulos podres das suas carteiras nos cofres dele. A PEC autorizou, inclusive, o BC comprar títulos podres no obscuro mercado secundário, um mecanismo secreto de negociação em que o operador do BC pode pagar ao especulador corrupto 100 reais por um título bichado que vale menos que 5 reais!“

Este parágrafo inicial é um exemplo de “discurso extremista de esquerda”, capaz de inflamar uma suposta base-de-apoio. Na verdade, “prega para já convertidos” em sites com posicionamento apriorístico e dogmático. Vale analisar tanto a forma quanto o conteúdo do discurso para avaliar se ele informa ou deforma a opinião de seus leitores.

Quanto à forma, observam-se adjetivos em profusão: dominante, sanitária, ambicioso, vultoso, fake, baixas, indecente, podres, obscuro, secundário, secreto, corrupto, bichado. Em três frases com oito linhas encontram-se trezes adjetivos para menosprezar o papel histórico de qualquer Banco Central: socorrer o sistema financeiro nacional de um risco sistêmico com corrida bancária. Esta ocorre quando se quebra a confiança em sua segurança e os clientes correm para sacar seus depósitos e/ou resgatar seus investimentos.

Menosprezo expressa uma depreciação a priori de qualquer medida tomada em favor dos clientes dos bancos. Esse desprezo ou sentimento de aversão ou repugnância demonstrado por bancos se alastra para qualquer cliente investidor de suas reservas financeiras, inclusive para a aposentadoria após uma vida ativa de trabalho.

Antes de prosseguir na análise de típico discurso de “denúncia do capitalismo”, cabe analisar alguns fatos e dados para dimensionar o sistema financeiro nacional. É necessário verificar quem são seus participantes. São apenas “especuladores” ou “rentistas parasitas” como sugerem os críticos do socorro financeiro?

Segundo dados do FGC, em fevereiro de 2020, correntistas com depósitos à vista são 105,7 milhões clientes. As faixas de valor até R$ 5 mil concentram a maior parcela dos depositantes: 96%.  Para ter uma base de comparação, existem 71 milhões de domicílios familiares no País, ou seja, praticamente todas devem ter pelo menos um correntista.

A população ocupada é composta por 93,7 milhões trabalhadores. A população desocupada compõe-se de 12,3 milhões de pessoas. Logo, a força de trabalho (pessoas ocupadas e desocupadas) é estimada em 106,1 milhões de pessoas. É número próximo do total de contas correntes do sistema bancário. A classe trabalhadora é cliente dele.

As reservas financeiras da maioria dos clientes são pequenas. Mas a higidez do sistema depende da permanência da confiança de todos com acesso à cidadania financeira: o direito de ter acesso a bancos para crédito, investimento e pagamentos eletrônicos.

Depósitos a Prazo somam R$ 1,013 trilhão, realizados por 32,2 milhões clientes. Na faixa até R$ 5 mil há 26,4 milhões de contas.  Na faixa com valores acima de R$ 1 milhão, de fato, concentra a maior parte do saldo, R$ 698,5 bilhões (69%), distribuídos por 77.912 titulares (0,23% dos clientes).  Esses CDB pós-fixados (% CDI) não perderam dinheiro.

Depósitos de Poupança atingem R$ 814,7 bilhões com 174 milhões de contas. No entanto, 152 milhões de clientes situa-se na faixa até R$ 5 mil, concentrando 88% dos depositantes e 7,4% do valor total. Na faixa acima de R$ 1 milhão, havia 17.445 contas (0,01%); elas possuíam 5% do saldo total. Esses depósitos populares também não sofreram marcação a mercado.

Os dados pertinentes ao total de créditos e ao número de clientes totalizam cerca de R$ 2,318 trilhões, distribuídos por 297 milhões titulares. Entre eles, 265 milhões de contas (89%) com saldo até R$ 5 mil possuíam 4,4% desse valor total, enquanto 145.712 clientes (0,04%) possuíam saldos acima de R$ 1 milhão, acumulando R$ 1 trilhão (43%).

Daí o denunciante do “socorro a bancos e especuladores parasitas” quer discriminar esses 0,04% e deixa-los perder 43% das captações do sistema bancário?! Não entende esse sistema ruir, para todos os clientes, com essa perda súbita de riqueza financeira?

Além desses títulos e valores mobiliários, em fevereiro de 2020, segundo a ANBIMA, registraram-se 7,145 milhões contas em fundos de investimento, sendo 4,785 milhões do varejo tradicional. São 2/3 de mais baixa renda com média per capita de R$ 31.575.

O “crédito privado” é composto por debêntures. Eram vistas, no ano passado, como um bom componente da carteira dos fundos de renda fixa e dos DI, porque diversificava o risco e dava um retorno adicional, para compensar um pouco a queda do CDI de 14,25% para 3,75% aa. São títulos de dívida direta de empresas de baixo risco de calote (chamados de ‘triple A’ no mercado), como manda a legislação.

Não são “ativos podres” como colunistas de esquerda denominam. Serão, em condições normalizadas, carteiras com qualidade de crédito excelente. Colocadas à venda em simultâneo, em um mercado secundário desorganizado, perderam valor de mercado em março. Investidores com preferência pela liquidez passaram a exigir “prêmio” para as comprar, por exemplo, rentabilidade de CDI + 4% ao ano em vez de CDI + 0,8%.

Dada essa crise de liquidez, imprevista e inédita, na história recente, cabe ao Banco Central do Brasil adquirir os poderes outorgados na MP para emitir moeda e se tornar “Market-maker” (fazedor de mercado) nesse período de transição. Na tradição brasileira, o BNDESPAR deveria ter essa atuação anticíclica, inclusive poderia obter lucro ao revender as debêntures ou as ações pelas quais elas são conversíveis, após a normalização.

Não recorrer ao BNDES parece ser uma idiossincrasia dos ultraliberais no comando do ministério da Economia. Essa particularidade comportamental é própria de um grupo de economistas, cujo dogma é achar os bancos públicos fazerem “má alocação de capital”, diferente da feita “espontaneamente” por um suposto mercado autorregulado.

O Conselho Monetário Nacional (CMN) vai regulamentar a compra e venda pelo Banco Central do Brasil (BCB) no mercado secundário de títulos do Tesouro e de crédito privado, além de direitos creditórios, depois da aprovação de Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no Senado. Essas diretrizes para a atuação do BCB deverão estar em linha com parâmetros usados por outros. A “jabuticaba” é no Brasil não haver a possibilidade de depósitos voluntários dos bancos na Autoridade Monetária. Caso houvesse, ela cortaria as operações compromissadas (18% da DBGG) e cobraria juros como um custo de oportunidade para incentivar eles voltarem a emprestar.

O CMN vai definir qual crédito poderá́ ser comprado, quais setores serão elegíveis e qual é o tipo de risco tomado com o dinheiro emitido com essa finalidade. Deverão ser fixados, por exemplo, um percentual máximo de aquisição por emissão, um rol de setores e empresas.

O CMN vedou até 30 de setembro de 2020 a distribuição por instituições financeiras de dividendos acima do mínimo obrigatório previsto em estatuto social. Além disso, proibiu temporariamente o pagamento de juros sobre capital próprio e o aumento de remuneração, fixa ou variável, dos administradores dessas instituições. Visa evitar o consumo de recursos importantes para a manutenção do crédito e para a eventual absorção de perdas futuras. E evitar lucro e ganhos extras com a liquidez concedida.

Ou é desinformado sobre o risco de crise sistêmica atingir a toda população, ou tem má-fé quem pratica, neste momento grave, o discurso de propaganda política enganosa “nós contra eles”. É o habitual reducionismo da complexidade social à luta binária de classes sociais. Herdado do século XIX, quando as condições de vida da classe trabalhadora eram péssimas e, praticamente, não cabia falar em uma classe de renda média, ainda encontra fervorosos pregadores (e crentes) de colocar banqueiros como “bodes-expiatórios”. Sacrificá-los, em “caça às bruxas”, não resolverá a crise.

Este instinto de separação faz a divisão de uma sociedade complexa em dois grupos, distintos e supostamente conflitantes, com uma lacuna imaginária de injustiça no meio entre eles. Cria uma imagem mental, dominante em mentes ingênuas, de um mundo rachado só em dois tipos de pessoas: rico versus pobre. “Nós, pobres, contra eles, ricos”, quando dito por intelectual de classe média, soa à demagogia.

Demagogia é um termo de origem grega com significado de “arte ou poder de conduzir o povo”. É uma forma de atuação política na qual existe um claro interesse em manipular ou agradar à massa popular, incluindo promessas muito provavelmente não possíveis de serem realizadas. Visa apenas à conquista de poder político.

Um discurso demagógico costuma ser populista. Em geral, é proferido em campanha eleitoral. Técnicas dessa oratória buscam aliciar o eleitorado. Eleito com pequena maioria dos votos válidos, mas com apoio de uma minoria dos eleitores, o populista, seja de direita, seja de esquerda, diz falar em nome (ou no lugar) de todo o povo!

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