Vencer a pandemia e o sistema: a visão de Angela Davis e Naomi Klein

Ícones do ativismo global apontam o capitalismo predatório e o racismo estrutural como agravadores da pandemia, mas veem oportunidade para reinventar as sociedades

Debate promovido pela organização The Rising Majority reuniu as pensadoras Angela Davis e Naomi Klein, ícones do ativismo global

O Brasil ou seu atual presidente, Jair Bolsonaro, são mencionados quatro vezes no debate recente entre dois ícones do ativismo global: a filósofa e ativista negra feminista Angela Davis, de 75 anos, e a escritora canadense Naomi Klein, 49. O encontro, no dia 2 de março, foi promovido pela organização norte-americana The Rising Majority (a maioria crescente, em inglês).

Davis e Klein analisaram como o capitalismo predatório, o racismo estrutural e a desregulação do sistema financeiro deixaram boa parte do mundo ocidental em piores condições para o enfrentamento da crise do coronavírus. Elas também apontaram para as oportunidades que emergem de um cenário em que foi declarado estado de emergência.

Autora de livros como Sem Logo e A Doutrina do Choque, Klein destacou quatro características pré-existentes à Covid-19 “criadas pelo capitalismo” que teriam enfraquecido o que chamou de “sistema imunológico global”:

  • Na área da saúde, os sistemas privados de assistência médica, que visam ao lucro, como nos EUA, e a crescente fragilização dos sistemas públicos de saúde, “sufocados por programas de austeridade fiscal”, como na Itália, Reino Unido e Brasil;

  • Nos negócios, o que chama de oportunismo corporativo, que se preocupa com o lucro e os interesses das empresas mais do que com a solução dos problemas ligados à pandemia. Klein cita as recentes as tentativas de afrouxar regulações financeiras em nome de incentivar a economia.

  • Na política, os ataques explícitos à democracia a partir dela própria, distorcendo as funções de suas instituições, restringindo direitos e liberdades – quesito no qual Bolsonaro ganhou destaque ao lado do húngaro Victor Orban e do indiano Narendra Modi.

  • Em relação ao emprego, ela cita a desvalorização de certas atividades agora essenciais, sejam enfermeiros e auxiliares ou cozinheiros, empacotadores e entregadores, que estão agora no front da pandemia e que “são tratados como pessoas descartáveis”.

Angela Davis emendou que a crise torna claras algumas das perversidades do racismo estrutural, que resulta na maior vulnerabilidade das populações negras à Covid-19 e na estigmatização dos povos asiáticos. Foi o que demonstrou o ministro da Educação do Brasil, Abraham Weintraub, ao fazer chacota com chineses para sugerir teorias da conspiração.

Autora de A Liberdade É uma Luta Constante e Mulheres, Raça e Classe, a ativista símbolo do abolicionismo penal e do anticapitalismo como dimensões da luta antirracista, apontou para as mudanças de perspectiva sobre velhos problemas e para novos modelos de ação coletiva que podem emergir da crise:

  1. A ineficiência do neoliberalismo econômico em promover o básico para a sobrevivência dos indivíduos, como abrigo, alimentação, educação e saúde, ficará mais evidente. Isso fará as pessoas pensarem em alternativas de organização econômica e social;
  2. A retirada dos presídios de pessoas vulneráveis ou condenadas por crimes não violentos, para que uma pena de quatro anos não se torne pena de morte por Covid-19, pode ser o início de um processo mais profundo de desencarceramento que, diz Davis, consiste numa “importante estratégia de evolução e desenvolvimento”;
  3. A emergência de uma solidariedade global a partir da necessidade de conexão com outro e da retirada dos norte-americanos de seu centrismo. “Veja o Brasil, que está muito pior que nós [norte-americanos], apesar da similaridade dos dois líderes. Podemos ajudar na organização e articulação dos movimentos sociais de lá para que encontrem saídas criativas para essa crise”, disse Davis.

Para as duas pensadoras, a epidemia de coronavírus pode atualizar, a toque de caixa, o que havia pouco ainda era tratado como utopia: a necessidade urgente de solidariedade entre as pessoas e entre as nações.

Com informações da Folha de S.Paulo