Confúcio está ganhando a guerra contra o Covid-19
Compare-se a reação serena de centenas de milhões de asiáticos à crise do coronavírus com o medo, o pânico e a histeria ocidentais.
Publicado 15/04/2020 17:38
Enquanto os Frenéticos Anos 20 desencadeiam uma reconfiguração radical do planeta, o coronavírus (literalmente, veneno coroado), para todos os fins práticos, serviu um cálice de medo e pânico a miríades de latitudes, em sua maioria ocidentais.
O filósofo sul-coreano de nascimento e sediado em Berlim, Byung-Chul Han expôs com muita convicção o argumento de que os vencedores são “estados asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan e Cingapura, que têm uma mentalidade autoritária que vem de sua tradição cultural de confucionismo”.
Han acrescentou: “As pessoas são menos rebeldes e mais obedientes que na Europa. Elas confiam mais no estado. A vida cotidiana é muito mais organizada. Acima de tudo, no confronto com o vírus, os asiáticos têm um forte compromisso com a vigilância digital. As epidemias na Ásia são combatidas não apenas por virologistas e epidemiologistas, mas também por cientistas da computação e especialistas em megadados”.
Essa é uma visão reducionista, e muitas nuances seriam aplicáveis. Vejam a Coreia do Sul, que não é “autoritária”, e sim um estado tão democrático quanto as principais potências liberais do Ocidente. O que de fato se viu, em poucas palavras, foi a mentalidade cívica da esmagadora maioria da população respondendo a políticas governamentais corretas e competentes.
Seul partiu para a mobilização rápida das competências científicas: aplicação imediata de testes em massa; amplo rastreamento de contatos e também distanciamento social. O mais importante, contudo, é que a maior parte dessas medidas não foi imposta por um poder central. Como houve uma integração orgânica, a Coreia do Sul não precisou restringir de forma drástica os movimentos nem fechar aeroportos.
O sucesso de Hong Kong deve-se, em boa medida, a seu estupendo sistema de saúde. Os profissionais que trabalham na linha de frente, tendo frescas em sua memória institucional as epidemias recentes de SARS, estavam dispostos a entrar em greve caso medidas severas não fossem adotadas. O êxito de Hong Kong e de Taiwan deveu-se também à infinidade de vínculos profissionais entre sua medicina e os sistemas de saúde pública.
A barbárie com rosto humano
E também há os megadados. Han afirma que nem na China nem em outros países do Leste Asiático existe análise critica suficiente com relação à vigilância digital e aos megadados. Mas isso também tem a ver com a cultura, porque o Leste Asiático é pesadamente coletivista, e o individualismo não ocupa a linha de frente.
Bem, aí temos muito mais nuances. Em toda a região, o progresso digital é pragmaticamente avaliado em termos de eficácia. Wuhan empregou megadados usando milhares de equipes investigativas, que procuravam indivíduos possivelmente infectados e selecionavam quem teria que ficar em observação e quem teria que ser colocado em quarentena. Baseando-nos em Foucault, podemos chamar isso de biopolítica digital.
O ponto em que Han está correto é quando ele diz que a pandemia pode vir a redefinir o conceito de soberania: “O soberano é aquele que recorre aos dados. Quando a Europa proclama um estado de emergência ou fecha fronteiras, ela ainda está acorrentada aos velhos modelos de soberania”.
A reação em toda a União Europeia, inclusive e especialmente em Bruxelas, tem sido pavorosa. O que se vê são sinais evidentes de impotência e falta de qualquer preparação séria, embora a União Europeia contasse com a vantagem de ter sido avisada com antecedência.
A primeira reação instintiva foi a de fechar fronteiras; juntar todo o pouco equipamento disponível e a partir daí, bem no estilo do darwinismo social, foi cada país por si, com a alquebrada Itália totalmente abandonada à própria sorte.
A gravidade da crise, principalmente na Itália e na Espanha, onde idosos foram deixados morrer em “benefício” dos mais jovens, deveu-se a uma escolha de economia política muito específica por parte da União Europeia: o diktat da austeridade imposta a toda a zona do euro. É como se, de um modo macabro, a Itália e a Espanha estivessem pagando, literalmente em sangue, para continuar participando de uma moeda, o euro, que elas, para começo de conversa, jamais deveriam ter adotado.
Quanto a França, leiam aqui um resumo relativamente decente do desastre que assola a segunda maior economia da União Europeia.
Seguindo adiante, Slavoj Zizek, em tom sombrio, prevê para o Ocidente “uma nova barbárie com um rosto humano, medidas cruelmente sobrevivencialistas impostas com pesar, e até mesmo com uma certa simpatia, mas legitimadas pela opinião de especialistas”.
Em um contraste patente, Han prevê que a China será, a partir de agora, capaz de vender seu estado policial digital como modelo de sucesso contra a pandemia. “A China irá exibir ainda mais orgulhosamente a superioridade de seu sistema”.
Alexander Doem ousa ir mais longe que qualquer outro. Ele já vem conceituando a ideia de um estado em mutação (como o vírus), transformando-se em uma “ditadura médico-militar”, no exato momento em que assistimos em tempo real o colapso do mundo liberal global.
Entra em cena a tríade
Eu proponho, como hipótese de trabalho, que a tríade asiática de Confúcio, Buda e Lao-Tsu foi absolutamente essencial para configurar a percepção e a reação serena ao Covid-19 de centenas de milhões de pessoas em diversos países asiáticos. Compare-se isso ao medo, ao pânico e à histeria que prevalecem por todo o Ocidente, em grande parte alimentados pela mídia empresarial.
O Tao (“o caminho”), tal como formulado por Lao Tzu, trata de como viver em harmonia com o mundo. O confinamento, necessariamente, leva a um mergulho no yin, em vez do yang, fazendo-nos desacelerar e embarcar em muita reflexão.
Sim, é tudo uma questão de cultura, mas de uma cultura que tem raízes em uma filosofia muito antiga e é praticada na vida cotidiana. É assim que podemos encarar o wu-wei – a “ação na não-ação”- aplicada a como lidar com a quarentena. Ação na não-ação significa ação não-intencional. Em vez de lutar contra as vicissitudes da vida, como uma pandemia, devemos deixar que as coisas sigam seu curso natural.
Isso é muito mais fácil quando conhecemos esse ensinamento do Tao: “A saúde é a grande riqueza. O contentamento é o grande tesouro. A confiança é o melhor amigo. O não-ser é a maior alegria”.
Ajuda também saber que “a vida é uma série de escolhas naturais e espontâneas. Não resista a elas – isso só gera dor. Deixe que a realidade seja a realidade. Deixe que as coisas fluam adiante naturalmente, da forma como bem entenderem”.
O budismo corre paralelo ao Tao: “Todas as coisas condicionadas são impermanentes. Quando entendemos isso com sabedoria, nos afastamos do sofrimento”.
E, para colocar em perspectiva nossas vicissitudes, ajuda saber que: “É melhor viver um único dia vendo o surgimento e a queda das coisas do que viver cem anos sem nunca ter visto o surgimento e a queda das coisas”.
No que se refere a essa tão necessária perspectiva, nada supera “a raiz de todo o sofrimento é o apego”.
E, então, há a perspectiva suprema: “Alguns não entendem que temos que morrer. Mas aqueles que entendem fazem as pazes com seus desafetos”.
Confúcio vem sendo uma presença constante em toda a linha de frente do Covid-19, onde o estarrecedor número de 700 milhões de chineses permaneceram, durante semanas, em diferentes formas de quarentena.
Pode-se facilmente imaginá-los se agarrando a umas poucas pérolas de sabedoria, como por exemplo: “A vida e a morte têm suas ordenações determinadas; as riquezas e as honrarias dependem do céu”. Ou “aquele que aprende mas não pensa está perdido. Aquele que pensa sem aprender corre grande perigo”.
Acima de tudo, em um momento de grande turbulência, traz conforto saber que “a força de uma nação depende da integridade do lar”.
E, em termos de lutar contra um inimigo perigoso e invisível, ajuda conhecer essa regra prática: “Quando fica óbvio que os objetivos não podem ser alcançados, não ajuste os objetivos, ajuste os passos que levam até eles”.
Então, qual seria o insight supremo que um Oriente sereno pode oferecer ao Ocidente em tempos tão difíceis? É tão simples, e está tudo no Tao: “Do afeto vem a coragem”.
Fonte: Asias Times, via BR247
Tradução: Patricia Zimbres